Por Gisele Coutinho
Se tem um instrumento essencial hoje para proteção de nossas terras e florestas é o Código Florestal Brasileiro. A Lei Federal criada em 2012 (Lei 12.651), considerada a política pública ambiental mais relevante da atualidade, esbarra na aplicação, que ainda precisa andar a passos mais largos e superar a barreira espinhosa do que a secretária executiva do Observatório do Código Florestal, Roberta Del Giudice, chama de “agrocrime”.
Neste aniversário de 10 anos do Código, marcado nesta quarta-feira, 25/05, o Pará Terra Boa ouviu a especialista para comentar o que avançou e o que ainda falta para garantir sua aplicação. Um dos pontos de forte atenção nesse processo é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), autodeclaratório e obrigatório a todas as propriedades e posses rurais no Brasil, que, infelizmente, é cercado de irregularidades, em sua maioria em forma de sobreposições com florestas públicas.
Cabe aos governos federal e estadual analisarem e validarem os registros do CAR de quase de 7 milhões de imóveis no território nacional para confirmar se as informações são reais e se estão corretas. É a partir daí que são detectados os ativos e os déficits de vegetação natural, etapa muito importante para garantir que a lei seja cumprida e toda a papelada que comprova que os donos daquelas terras estão com tudo em dia. O outro passo é o Programa de Regularização Ambiental (PRA) a cargo do proprietário rural, com o objetivo de corrigir tais déficits ambientais em Áreas de Proteção Permanente (APP) e Reservas Legais (RL).
A responsabilidade do Governo Federal reside na Lei de Gestão de Florestas Públicas, 11.284, de março de 2006. Ela é explícita quando diz que compete ao Serviço Florestal Brasileiro, vinculado ao Ministério da Agricultura, gerenciar o cadastro nacional de terras públicas, que incluem terras indígenas, unidades de conservação e florestas públicas não destinadas.
Ao Pará Terra Boa, o secretário Adjunto de Regularização Ambiental do Pará, Rodolpho Zahluth Bastos, afirmou que como o CAR é um instrumento autodeclaratório. “O maior desafio foi ampliar a quantidade de análises. Para isso, houve a criação de estratégias de avaliação, além do Regulariza Pará, que desenvolveu outras 10 estratégias de ação para avançar a regularização no Estado, a exemplo da municipalização da análise do CAR, banco de servidão florestal, metodologia simplificada de validação do CAR para imóveis da agricultura familiar e o apoio à elaboração do CAR de povos e comunidades tradicionais”.
O secretário ressaltou importância da análise dos cadastros. “O cancelamento de CAR é fruto do avanço das análises das informações autodeclaratórias. Ao avaliar o cadastro, se está localizado em terra indígena, por exemplo, uma das estratégias é a retificação, suspensão ou cancelamento imediato de CAR, a depender do percentual de sobreposição de cada caso”.
Quais foram os avanços em 10 anos?
O CAR é considerado, quando bem aplicado, um dos principais avanços nesses 10 anos de criação do novo Código.
“O maior avanço que a gente teve foi em conhecimento, em informação, geração de dados. Nós conhecemos o meio rural brasileiro e sabemos onde é preciso ter um esforço maior de proteção, onde precisa ter restauração, onde é preciso fomentar o desenvolvimento de cadeias baseadas em plano de manejo florestal sustentável para atender o mercado de madeira, por exemplo, com produto que seja livre de desmatamento”, conta Roberta.
Ela não deixa de alertar sobre a complexidade brasileira para colocar em prática a legislação.
“Temos diferentes desafios no Brasil. Na Amazônia, o principal desafio é saber se a área é habitada por populações tradicionais, por exemplo. Já na Mata Atlântica, o desafio é restauração, é totalmente diferente. O PRA (Programa de Regularização Ambiental) é um programa de regularização ambiental que busca trazer todos os imóveis para legalidade, para dentro do cumprimento da lei. O que o imóvel tem de topo de morro, de Reserva Legal, de vegetação natural, de rios, e qual a área de uso daquele imóvel”
Todas essas informações entram no SICAR – Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural, que conta hoje com 6 milhões de imóveis inscritos com 510 milhões de hectares de imóveis rurais em todo Brasil. Isso tudo é analisado para dar início a assinaturas de termos de compromisso.
Roberta faz um apelo: “O produtor rural não precisa esperar essa análise. Ele pode começar a dar andamento na regulação ambiental do imóvel”, destaca, sobre áreas que já perderam a vegetação natural e devem ser reflorestadas com urgência.
“O PRA (Programa de Regularização Ambiental) é essa assinatura do termo de compromisso, o monitoramento, a implementação desse termo, a conversão das multas por ter desmatado de forma irregular antes da assinatura, e então o imóvel é regularizado. Essa é a efetiva implementação do Código Florestal em campo. Ainda estamos no primeiro passo, no cadastro. E não dá para esperar mais 10 anos para os próximos passos, ainda mais com a quebra de safra, queimadas, desmatamento. Isso tudo vem aumentando e precisamos acelerar essa efetivação”.
Como fazer isso?
Buscar mobilizar os governos estaduais e o setor privado para fazer essa implementação é uma peça chave da ação, segundo Roberta. “A própria sociedade precisa se envolver. O brasileiro precisa conhecer o que é a lei de proteção de vegetação natural. Precisa pensar que a floresta faz parte do Brasil e o País é conhecido por isso”, alerta. Segundo o Observatório, 74% da população brasileira não conhece o Código Florestal.
“Manter a vegetação local, a floresta em pé, o desenvolvimento econômico e promover justiça social no campo com reconhecimento dos territórios nacionais são questões brasileiras desde sempre, desde 1500. É preciso reconhecer os territórios tradicionais. São questões que levam a implementação da lei e contribuem com o Brasil como um todo”.
Em 8 dos 10 anos da lei do Código no Brasil, tivemos 13,5 milhões de hectares de perda de vegetação natural (o que foi computado até o momento). Para Roberta, “é preciso mostrar as boas práticas para melhorar a implementação do Código”.
Por isso, foi lançada a plataforma de gestão de informação, ferramentas e incentivos para adequação ambiental e uma série de possibilidades para acelerar a implementação do Código. Qualquer pessoa pode se inteirar do assunto, conhecer a aplicação da lei e como ela pode transformar o País.
A ferramenta online está disponível gratuitamente aqui.
“Se você não está passando fome, você precisa verificar se aquele produto veio foi produzido atendendo a legislação, sem desmatamento, esse é um primeiro passo. Mas esse ano de 2022 temos a possibilidade de mudança fundamental desse cenário por conta da eleição. É preciso saber como pensa nosso deputado, nosso senador, aquele candidato para governador, o presidente. É preciso saber o que essa pessoa pensa sobre meio ambiente, sobre a floresta. É uma decisão muito ligada à direção do nosso Estado. Então, é preciso prestar atenção na hora de eleger nossos representantes”.
O que está “ralado” para avançar?
Quando questionada, na gíria paraense, sobre o que “está mais ralado” para avançar, ou seja, o que está mais difícil para a implementação do Código, Roberta cita o início da restauração, com donos de terra se responsabilizando e iniciando na prática o resgate da vegetação nativa de áreas degradadas.
“O que está mais longe é o início da restauração. Ações de punição, com o cancelamento de CAR em unidade de conservação, em terra indígena, em terra pública desmatada ilegalmente é um sinal que a lei será implementada. Aí você faz uma análise priorizada de cadastros com grandes áreas degradadas. Esses déficits de vegetação estão concentrados em poucos e grandes imóveis. Essa implementação vai acontecer quando começar a ser cobrada. A restauração pode gerar renda, com produção de mudas, sementes, mas precisa ser fomentada pela demanda em razão da aplicação da lei”, avalia.
Diferenciar agro do ‘agrocrime’
Quais são, então, as pressões políticas e interesses do agronegócio que mais desviam a implementação do Código de seu caminho?
“A gente tem hoje um agronegócio que já percebeu a vantagem de ter uma commodity mais sustentável, sem pressão no Congresso Nacional, seguindo as leis, que quer continuar vendendo para a União Europeia, e esse agro vem tentando se adequar. Temos muitos exemplos no setor da silvicultura, da cafeicultura, pecuária sustentável…”
“Mas a gente também tem um agrocrime, que se beneficia da grilagem de terras, do desmatamento ilegal, da retirada de povos e comunidades tradicionais dessas áreas e que faz uma pressão no Congresso Nacional pela alteração das leis que protegem as florestas: do Código Florestal, da Regularização Fundiária… O agrocrime tenta reduzir a proteção de Reserva Legal, tenta retirar o Mato Grosso da Amazônia Legal para reduzir a proteção que se tem e gerar 10 milhões de hectares que poderiam ser desmatados legalmente se essa lei for aprovada, o que tem o potencial de afetar o clima do Brasil todo de forma drástica”.
“E tem essa banda que é ligada a essa criminalidade de corrupção, armas, coisas muito danosas para nosso meio ambiente e revela uma imagem desse Brasil que não quer cumprir com legislação e nem proteger floresta. Precisamos separar bem quem está produzindo e quem procura se regularizar desse ambiente criminoso que promove inúmeros projetos de lei no Congresso tentando reduzir a proteção legal que temos para o meio ambiente”.
Onde está o déficit?
“A maioria dos imóveis que tem déficit de vegetação são médios e grandes. São pessoas com recursos para restaurar. E essa restauração deve mobilizar todo o mercado, gerando renda, com plantação de árvores frutíferas, por exemplo, para enfrentar a fome”.
Para onde vai o crédito rural?
Teoricamente, quando a lei é cumprida, o crédito rural é cancelado quando identificado o desmatamento. No entanto, esse crédito é mais acessível para os médios e grandes produtores. E ainda outras verbas públicas são aprovadas com facilidade a grandes produtores ou atividades da indústria, além do agronegócio, atreladas à degradação da floresta, como indústrias químicas, por exemplo.
“A população brasileira precisa decidir onde colocar seu recurso. Em primeiro lugar, precisamos de transparência na concessão de crédito público. Os relatórios públicos são incompreensíveis sobre onde foi investido o dinheiro, se em desmatamento ou em ações que beneficiam o meio ambiente. Sabemos que é responsabilidade de todos a preservação do meio ambiente. É possível cobrar do financiador que ele está emprestando recursos públicos a uma atividade que desmata. Para onde o recurso está indo? O Código estabelece apenas que se cobre o CAR”.
“Precisamos ir além, analisando e questionando todas as facilidades e isenções de impostos e reduções de alíquotas para equipamentos, veículos e etc. para quem não cumpre a lei”.
LEIA MAIS:
Sobreposição de CAR é obstáculo para implementação do Código Florestal
Código Florestal completa 10 anos sem pacificar o campo no Pará
Veja dados atualizados do CAR no Brasil e no Pará que emperram o Código Florestal
Quase todos imóveis rurais na Amazônia e Matopiba não têm CAR validado
Um terço das florestas tem registro irregular no CAR
CAR é usado por grileiros de terras públicas na Amazônia