Por Ivana Guimarães
Na manhã do último dia 8, a lancha Dona Lourdes II naufragou nas proximidades da ilha de Cotijuba, em Belém. De acordo com a Secretaria de Segurança do Pará (Segup), o naufrágio contabiliza 66 sobreviventes e mais de 20 mortes.
A tragédia expôs negligências nos rios amazônicos, e para entender sobre como esses transportes podem ser mais seguros, o Pará Terra Boa conversou com o engenheiro naval e professor da Universidade Federal do Pará, Pedro Lameira. O pesquisador também atua em construções de projetos de embarcações e explicou sobre como a tecnologia está ajudando no desenvolvimento de barcos que utilizam energia 100% limpa.
A partir do naufrágio na ilha de Cotijuba, quais são as medidas que você observa que precisam ser tomadas quando se fala na segurança das embarcações dos rios paraenses?
Pedro Lameira – Primeiramente, acredito que seja importante entender o contexto de acidentes da mesma natureza que ocorreram no passado e comparar as similaridades dos eventos. A partir disso podemos começar falando um pouco sobre a superlotação nas embarcações de passageiros.
Ela compromete a estabilidade do transporte, impedindo que este se comporte bem na água. Em muitos trechos aqui da região amazônica, existem condições de rio relativamente adversas, como correnteza, ondas e vento. Então se a embarcação está lotada, ela perde a capacidade de manter sua estabilidade de forma segura.
Veja, um avião não decola com superlotação. É preciso que todos estejam sentados e que a capacidade de carga seja verificada. Se fosse todo mundo em pé, qualquer pessoa se recusaria a viajar nessas condições pelo risco da aeronave cair.
Na embarcação, infelizmente isso não acontece. O passageiro acaba aceitando essa situação muitas vezes por necessidade. Ou seja, ele está numa região em que precisa fazer esse movimento porque não tem acesso rodoviário. Ele precisa ir em uma consulta médica, tem a necessidade de estudar ou trabalhar. Então ele sai de regiões como a do Marajó para se expor a esse tipo de situação.
Outro aspecto que precisamos considerar é que estamos falando de um transporte que não tinha autorização do órgão regulador para operar na linha com passageiros e que saiu de um porto clandestino. Essas embarcações costumam ir parando em algumas localidades para pegar os passageiros. Então ela vai navegando e aumentando seu peso. Trata-se de uma tragédia anunciada.
Em uma embarcação que não está regular, a probabilidade de existir falta de manutenção e de preocupação com a segurança são ainda maiores. Então é um problema complexo. A fiscalização é muito importante e é óbvio que pode melhorar, mas a realidade amazônica não é simples. Os nossos rios são muito grandes e existem muitas localidades que são distantes uma das outras. Não é fácil aplicar fiscalização assim. Mesmo assim ainda existe, mas ela não é onipotente.
Quais fatores a gente pode levantar que são relevantes para que o risco dos acidentes diminuam?
Pedro Lameira – O primeiro ponto é a educação. Nós precisamos educar cada vez mais os condutores das embarcações e os tripulantes sobre a importância do transporte estar regular, da embarcação ser adequada para a linha e dos aparelhos de salvatagem, principalmente bóias e coletes salva-vidas estarem operacionais válidos.
E desta instrução ser transferida para os passageiros, já que é o tripulante quem tem experiência e conhecimento, por isso ele precisa passar essa instrução. Quando você entra numa embarcação de passageiros, a maioria das vezes ninguém passa orientações, você não sabe onde estão os equipamentos de proteção. Uma pessoa numa situação de sinistro precisa saber onde estão os coletes e as bóias, o que ela deve fazer e para onde ela deve ir.
Existe uma normativa da autoridade marítima da obrigatoriedade da embarcação de passageiros possuir um percentual mínimo de coletes para as crianças, por exemplo. Se uma criança tenta colocar um colete de adulto provavelmente não vai caber. Ela pode cair na água, o colete escapar e acabar morrendo afogada.
A tecnologia, o desenho e a engenharia têm evoluído para que as embarcações de rio sejam mais seguras?
Pedro Lameira – A navegação em rios tem duas áreas de operação. Área 1 e área 2. A área 1 é naturalmente abrigada. Ou seja, ela tem condições ambientais, vamos dizer assim, mais tranquilas de correnteza, de onda e ventos consideravelmente contornáveis.
A área 2 é parcialmente abrigada e possui condições ambientais com uma severidade maior. Os nossos rios são muito largos, né? Com dimensões em alguns locais até oceânicos. Existe uma zona de transição entre o rio e o mar chamado de estuário, que é uma região onde o mar ainda influencia no rio. Por isso que a gente tem aqui aquele ciclo da maré, a cada seis horas ela sobe e desce. Então, para operarem na área 2, as embarcações têm que possuir condições técnicas superiores e as normas técnicas da autoridade marítima são claras quanto a essa condição de navegação. Quando você solicita que a embarcação seja operacional, ela tem que atender a esses requisitos. A engenharia existe, a tecnologia existe. Ela só precisa ser obedecida. Porque isso existe por um motivo, que é aumentar a segurança.
E como essas tecnologias de segurança nas embarcações são desenvolvidas no Brasil?
Pedro Lameira – Quando falamos do aparelho de salvatagem, que é bóia e colete, isso já é algo bem difundido. Então, por exemplo, o colete foi feito para deixar uma pessoa flutuando por no mínimo 24h. Esses equipamentos normalmente são vendidos por revendedores, mas eles precisam ser homologados.
Existe uma certificação de homologação que é feita pela própria Marinha através da DPC (Diretoria de Portos e Costas) para garantir que estão sendo atendidas todas as condições. Existe também uma norma da autoridade marítima para navegação em rios que trata da localização do material de salvatagem. O colete não pode ficar em compartimento fechado. Tem que estar em local de fácil acesso, com a sinalização devida e com a instrução de uso. A responsabilidade de instruir é da pessoa que está operando, mas os passageiros são os primeiros fiscais, eles precisam ter essa voz.
Em relação ao combustível, já temos algum com biomassa ou que não seja fóssil?
Pedro Lameira – Hoje estou participando de um projeto junto com a iniciativa privada de embarcações movidas a energia elétrica. A gente sabe que a placa fotovoltaica, principalmente para embarcação de passageiro, não é capaz de gerar a energia total necessária pra se deslocar.
Mas a gente pode ter um banco ou uma distribuição de energia em terra, que carrega as baterias da embarcação e faz com que ela possa trafegar 100% com energia elétrica. Temos uma embarcação que já está na fase final de construção e estamos fazendo o projeto de outras lanchas menores para operar lá na região de Altamira.
Essa tecnologia já é uma realidade em outros lugares do mundo e nós estamos conseguindo trazer um pouco disso e aplicar em embarcações que vão operar aqui na região amazônica. Um dos projetos é uma embarcação um pouco maior que vai operar aqui na universidade. A UFPA fica na beira do rio Guamá e ela é bem extensa. Então o aluno vai poder se locomover com essa embarcação, cuja energia será gerada por uma uma fazenda solar que foi desenvolvida aqui na universidade. Então a energia é 100% limpa.