Você sabia que existe uma relação entre destruição florestal e o surgimento de doenças infecciosas?
Você sabia que há ao menos dois novos vírus circulando no Pará por causa dessa derrubada criminosa das árvores?
Você sabia que a febre amarela voltou a circular intensamente desde 2017 porque abrimos fronteiras na mata que antes nos protegiam de vírus?
Você, produtor rural, isola bem os seus grãos, para evitar roedores e o contato destes com os humanos?
Se você respondeu “não” a alguma das perguntas, recomendamos a leitura da entrevista que o jornal Valor fez com o médico infectologista Stefan Cunha Ujvari, mestre em doenças infecciosas pela Escola Paulista de Medicina e infectologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
A destruição da nossa, digamos, poupança, da nossa herança para nossos filhos, dos nossos quintais, das nossas árvores, não deixa na mão apenas as futuras gerações, mas também trazem doenças antes “adormecidas” na mata porque se você desmata uma região, os animais silvestres se espalham e com eles se espalham os vírus.
Novos vírus
No exato momento em que conversamos, está acontecendo o avanço de dois novos tipos de vírus que saíram do Pará e que já circulam pela Bahia, Minas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo. Um é o mayaro e o outro é o oropouche. Quem transmite é o Aedes aegypti. Vamos começar a conversa com seguinte informação: somos 8 bilhões de humanos que precisam se alimentar, habitar. Isso já implica em números recordes de desmatamento e crescimento veloz da urbanização em todas as partes do mundo, especialmente nos países mais pobres, onde o desmatamento é cada vez maior e mais rápido. Quando desmatamos, entramos em contato, ou trazemos para perto, animais selvagens que são portadores de vírus. Não tem segredo.
Fronteiras abertas
A conta não fecha porque temos pelo menos dois pontos cruciais: primeiro negligenciar a relação de causa e efeito entre pobreza, desmatamento e o surgimento de doenças infecciosas. A febre amarela voltou a circular desde 2017 no Brasil e só agora surgiram os resultados dos primeiros trabalhos para entender por quê. Sabe o que esses trabalhos mostram? Que é o fracionamento das matas, o desmatamento fracionado, que está ampliando os canais de contato do homem com a mata e para os animais da mata saírem com seus vírus. Por que a febre amarela explodiu? Por conta dessas “fronteiras” abertas. Fala-se em injustiça climática. Pode acrescentar injustiça sanitária. Todo mundo paga a conta.
Combate ao desmatamento resolve?
Não só. Desde a década de 1970 a Nigéria não registrava nenhum caso do monkeypox, que vive em roedores. Em 2017, apareceram os primeiros casos por lá, ninguém ligou. Em 2018, o número de casos cresceu. Ninguém deu bola. Só ligaram o alerta quando registraram um caso em Israel, outro nos Estados Unidos e quatro casos no Reino Unido. Só que já era tarde. É muita ingenuidade acreditar que as doenças que surgem na África ficarão por lá e que basta cuidar do meu quintal.
Saídas
Do ponto de vista estritamente produtivo, temos as agroflorestas que estão crescendo em importância por aqui. Produzir e preservar é possível? Sim, e essas técnicas mostram isso. A agricultura e a pecuária no Brasil são muito bem regulamentadas e fiscalizadas do ponto de vista sanitário, embora não se possa dizer o mesmo sobre o desmatamento.
Precisamos de medidas preventivas em nível global?
Sim e a OMS [Organização Mundial da Saúde] já preparou vários protocolos. O problema é que não se dá a devida atenção ao tema. Você percebe uma mobilização muito grande em torno dos efeitos das mudanças climáticas, mas não vê a mesma mobilização quando o tema é saúde. Quando se fala de ESG (agenda ambiental, social e de governança, na sigla em inglês), acho que deveríamos acrescentar um ‘S’ para Saúde. O social deve ir além de diversidade e inclusão. Precisa tratar da pobreza como um problema de saúde pública. As injustiças climáticas alcançam o mundo, e as injustiças sanitárias também.
Próximas ameaças
Lembra do Mers [Síndrome Respiratória do Oriente Médio]. Todos os anos há casos de Mers. Este ano houve um no Catar, onde vai ocorrer Copa do Mundo, dentro de alguns meses. Esse vírus vem do camelo. Provavelmente vão levar mais camelos para o Catar para os turistas passearem. Será que vai haver aumento de casos de Mers? Um paciente na Coreia teve Mers. Ele passou por três hospitais, sem diagnóstico. Por quê? Porque aquela doença, aquele vírus era típico de uma região muito distante da Coreia, era do Oriente Médio, e demorou até que se fizesse o diagnóstico correto. A mesma coisa com o monkeypox. Demorou que se ligasse o nome ao vírus, porque não era um vírus daquela região, não se tinha histórico. Saiu um trabalho agora, no Rio Grande do Sul, de estudo com pouco mais de 100 morcegos e só nessa pesquisa descobriu-se dois novos tipos de coronavírus. Já tivemos o mesmo tipo de pesquisa na Alemanha, na Coreia, com o mesmo resultado: descoberta de novos tipos de coronavírus. Esses novos tipos não trazem perigo para o humano, mas pode haver mutações.
A iniciativa privada te procurou para fazer parcerias?
Não, e acho que é por falta de informação e conhecimento. Por exemplo, pouca gente sabe que há um novo vírus circulando por áreas urbanas, como é o caso do mayaro e do oropouche. Acho que falta conscientização mesmo. Há outros dois vírus, o hantavírus e o arenavírus, que também estão circulando. Ambos se alojam em roedores. Não causam problemas diretos em plantações, mas é preciso que os agricultores isolem bem os seus grãos, para evitar os roedores e o contato destes com os humanos. Outro exemplo é o vírus Sabiá, que tem uma mortalidade grande e que víamos na década de 1990. Em janeiro de 2020, uma pessoa ficou doente em São Paulo, com febre, hemorragia e óbito. O que aconteceu para ele reaparecer? O que mudou foram as condições para que ele voltasse a circular, especialmente os desmatamentos que avançaram muito nos últimos anos. Se você desmata uma região, os animais silvestres se espalham e com eles se espalham os vírus.
Como lidar?
O padrão a se observar é o dos países asiáticos. Eles correram o risco daquela epidemia de 2003, da Sars [Síndrome respiratória aguda grave]. Eram 9 mil casos, com 10% de morte – uma letalidade gigantesca. Na ocasião, prepararam todos os protocolos para quando aparecesse outro tipo de vírus. E quando surgiu o coronavírus, tinham a estratégia pronta. E ainda fizeram campanhas na TV e incentivaram jovens a prestar serviços aos mais idosos – o espírito coletivo, que não temos muito no Ocidente. Aqui, vou a uma balada e moro com a minha avó.
Fonte: Valor Econômico