Por Ludmila Azevedo
O cineasta paulistano Jorge Bodanzky, 80, possui uma trajetória premiada e reconhecida internacionalmente. Diretor, fotógrafo e produtor, ele faz parte de uma geração de documentaristas cujas obras seguem atuais e referência. Bodanzky foi um dos primeiros do país a filmar a floresta e “Iracema, uma transa amazônica” (1975), longa-metragem lançado nos anos de chumbo no Brasil, incomodou.
Temas urgentes, causas ambientais e ativismo marcam sua carreira e com “Amazônia, a nova Minamata?” não seria diferente. Bodanzky traça um paralelo com o que aconteceu na cidade japonesa de Minamata (leia texto abaixo), nos anos 50, para fazer uma denúncia contundente sobre o envenenamento causado pelo garimpo ilegal no rio Tapajós, no Pará. Ao longo de 70 minutos de documentário, o diretor acompanha personagens como o neurocirurgião Erik Jennings, equipe da Fiocruz, ribeirinhos e indígenas, com destaque para os Munduruku.
“Eu sempre corri riscos, de todas as formas. O filme mostra isso. Fui atacado, fui ameaçado. Na época que filmei ‘Iracema’ também foi assim. Tivemos sorte de não sermos presos porque aquela época era em plena ditadura militar e a gente podia ser torturado, morto. Então, o risco é inerente ao trabalho, quando você aborda um tema provocativo, um tema que denuncia”, explica.
O Pará Terra Boa conversou com o Jorge Bodanzky sobre “Amazônia, a nova Minamata?”, que vem cumprindo trajetória em festivais e mostras de cinema dentro e fora do país. Sem previsão de estreia no circuito comercial, o filme terá em breve uma versão em munduruku, que irá circular nas centenas de aldeias impactadas pelo tema.
Pará Terra Boa – O que você acha que mudou do final dos anos 60 para os dias de hoje quando pensamos nas urgências e demandas da região amazônica?
Jorge Bodanzky – São quase 50 anos que eu faço esses registros como fotógrafo e cineasta. Todos os problemas que identifiquei nos meus primeiros trabalhos só aumentaram. A novidade é que a sociedade civil se organizou mais. Hoje, quando você vai a comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas ,vê que estão mais organizados, têm representação.
Pará Terra Boa – Quando você coloca a interrogação no título – “Amazônia, a nova Minamata?” -, você faz uma provocação ao espectador. Será que seremos capazes de refletir e mudar?
Jorge Bodanzky – Foi intencional fazer as pessoas refletirem. Poucas pessoas sabem o que aconteceu em Minamata (Japão), eu mesmo não tinha a dimensão do problema. Conheci a história no processo do documentário. Então, era mesmo para provocar e fazer as pessoas questionarem o que Minamata tem a ver com a Amazônia.
Pará Terra Boa – Como foi seu contato com os personagens centrais de “Amazônia, a nova Minamata?” e como foi a construção de uma narrativa que mostra que a contaminação do mercúrio afeta toda a população?
Jorge Bodanzky – Em 2016, eu estava filmando a série “Transamazônica – Uma Estrada para o Passado” (HBO). Passei por uma comunidade Munduruku e havia uma reunião de caciques na qual havia um médico. Eu achei curioso e quis saber o que o médico fazia lá. Era o doutor Jennings, que virou um dos personagens do meu filme, e já naquele momento ele estava alertando sobre o envenenamento pelo mercúrio, especialmente no rio Tapajós, junto aos indígenas. Havia sinais muito claros sobre os efeitos da contaminação. Foi ele que fez a analogia com Minamata, no Japão. Eram os mesmos sintomas. E eu achei muito interessante porque a partir dessa observação sobre o passado, a gente pode ver o futuro dessa população que vive na região amazônica afetada pelo mercúrio. Minamata mostra as consequências se não fizermos nada. O trágico é que são consequências irreversíveis.
Pará Terra Boa – Você mostra a luta dos Munduruku no filme, um povo que sempre se articulou, e para o qual você, como cineasta, sempre deu visibilidade. Mas sabemos que os holofotes ainda hoje só se direcionam para povos ancestrais em situações de alerta.
Jorge Bodanzky – O alerta existe desde que existe o garimpo, mas já foi uma escala artesanal, pequena. E os efeitos do mercúrio, que demoravam para aparecer, passavam de forma despercebida. A medida que o garimpo se exacerbou e a quantidade de mercúrio aumentou, não só nos rios mas na atmosfera, os efeitos fizeram o alarme tocar. Hoje, temos indígenas que estudaram, se formaram em direito, em cinema. Eles estão mais articulados e visíveis porque o problema os afeta de maneira trágica. Estamos vendo o que aconteceu com os Yanomami, e os Munduruku têm uma questão muito similar. Talvez até seja mais complicado para eles porque os primeiros estão isolados e os outros estão sujeitos não só ao garimpo ilegal como a outros males que a civilização do branco é capaz de provocar. Enfim, não é só um problema brasileiro. O garimpo ilegal acontece nos países vizinhos. Você vê isso na Bolívia, no Peru, na Venezuela, nas Guianas, no Equador. Não dá para resolver só localmente, tem que ser resolvido de forma pan amazônica.
Pará Terra Boa – Há um ponto sensível quando pensamos em atividades como a mineração, que é o fato de viabilizaram economicamente pessoas e cidades. O discurso ambiental, muitas vezes, não tem a aderência desejada em virtude desse fato?
Jorge Bodanzky – Você tocou numa questão muito séria. Isso existiu no Japão também. A população de Minamata se dividiu: uma parte queria a empresa porque os empregos dependiam dela, mas eles tiveram uma luta política durante 30 anos para conscientizar a população. A parti daí, conseguiram ser indenizados e resolveram a situação. Não foi fácil, o filme mostra. As consequências permanecem por várias gerações. Na situação do garimpo no território Munduruku, uma boa parte da população indígena é garimpeira, depende do garimpo. E se o garimpo desaparece, como farão? Não tem mais caça, não tem mais peixe, eles dependem da comida que vem de fora, comprada com dinheiro e só conseguem dinheiro se associando ao garimpo. Então, é um grande problema. Não basta eliminar a atividade. É uma questão complexa, política, de organização da sociedade que precisa buscar alternativas financeiras e de trabalho. Isso passa por São Paulo, Londres, Nova York e Suíça, que são os compradores do ouro. E ainda tem outro fator quando pensamos em garimpo ilegal, que são as máfias internacionais. As máfias da cocaína e se unem às máfias do ouro porque lavam dinheiro com ouro. O garimpo ilegal é uma grande indústria e que tem seus financiadores. Dá para extrair o ouro de forma limpa, é mais caro, mais complexo. Exige maquinário e pessoas especializadas. Dá para fazer. O que não dá é para continuar como está.
Assista ao trailer aqui
Para entender Minamata
Em 21 de abril de 1956, uma criança com disfunções do sistema nervoso deu entrada no Hospital Shin Nihon Chisso, no Japão. Em maio, quatro outros pacientes com sintomas similares apareceram no centro de saúde pública de Kumamoto. Foi quando se detectou oficialmente o “Mal de Minamata”, doença cerebral causada pela ingestão de mercúrio.
A investigação da doença apontou pacientes das vizinhanças da Baía de Minamata, cuja dieta era rica em peixes e frutos do mar. Foram encontrados cristais de mercúrio orgânico nos dejetos da indústria química Chisso. O mercúrio era despejado em um rio que desaguava no mar, o principal fornecedor de alimentos às comunidades da região. A fauna marinha foi intoxicada e, através da comida, o metal altamente tóxico chegou à população.