A ação humana acumulada desde a Revolução Industrial, nos séculos 18 e 19, já produziu mudanças significativas no clima global, e adaptar moradias e cidades a essa realidade é uma necessidade que precisa de respostas urgentes, avaliam ambientalistas e pesquisadores ouvidos pela Agência Brasil. Eventos extremos, como as chuvas que deixaram mais de vítimas no litoral norte de São Paulo durante o carnaval, tendem a ser mais frequentes, e o poder público precisa agir para reduzir a vulnerabilidade das populações a esses cenários, destacam.
Nos últimos anos, recorrentes alertas dos pesquisadores do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU) indicaram que a influência humana levou o planeta à trajetória de aquecimento mais rápida em 2 mil anos e já produziu uma temperatura média que supera o período pré-industrial em mais de 1 grau Celsius (°C).
Especialistas estimam que a temperatura global pode subir 1,8°C até 2100, mesmo se forem cumpridas todas as metas estabelecidas em 2015 pelo Acordo de Paris, firmado para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Sem o cumprimento de tais metas, cenários devastadores para a biodiversidade podem se concretizar com o aquecimento de até 3°C.
Mas, além da extinção de espécies e do desequilíbrio de ecossistemas, os pesquisadores alertam que o aquecimento tornará mais frequentes episódios como temporais, inundações, secas e ondas de frio e calor. No Brasil, tais problemas atingirão em cheio cidades desiguais e com problemas de infraestrutura, sistema de geração de eletricidade dependente do regime de chuvas e economia que tem a agropecuária como setor de peso.
Como nos preparamos para isso?
Estudiosa do tema e presidente do Instituto Talanoa, Natalie Unterstell é categórica ao alertar que “não existem catástrofes naturais nas cidades brasileiras”. A avaliação da pesquisadora pode causar estranhamento diante de recorrentes eventos com dezenas e até centenas de vítimas, mas ela esclarece que nada disso é natural.
“É absolutamente catastrófico quando se sabe dos riscos climáticos e não se prepara para reagir, ou se prepara mal. Não há nenhuma naturalidade em desastres quando estamos falando de um ambiente urbano”, diz. “As mudanças climáticas têm, sim, um papel ao exacerbar esses riscos e exigem uma preparação maior. Ainda assim, pode haver danos residuais. Mas o que determina se vai ter tragédia, ou não, é como nós, humanos, nos preparamos para isso.”
A tempestade que atingiu as cidades paulistas na última semana foi a mais intensa já registrada por serviços meteorológicos no Brasil, com acumulado de 682 milímetros (mm) em 24 horas, segundo o Centro Nacional de Previsão de Monitoramento de Desastres (Cemaden). Isso equivale a dizer que, em cada metro quadrado da área mais atingida pelo temporal, caíram, em média, 682 litros de água da chuva — mais que a metade do volume de uma caixa d’água de mil litros em cada metro quadrado da cidade de Bertioga, onde a marca foi registrada. Em São Sebastião, município vizinho, o índice pluviométrico chegou a 626 mm em 24 horas.
O recorde anterior de temporal mais intenso tinha sido registrado há apenas um ano, quando a cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, foi inundada por 531 milímetros de chuva em 24 horas. A enxurrada deixou mais de 200 vítimas e devastou localidades como o Morro da Oficina, onde 90 pessoas morreram.
Natalie Unterstell destaca que não existe mais a possibilidade de um cenário climático que não vá exigir adaptação nos próximos anos. O que está em jogo é quão drástica precisará ser a adaptação. “Será a 1,5°C, a 2°C, ou a 3°C? Quanto mais emissões, mais riscos e mais necessidades de adaptação.”
“Temos ameaças muito diferentes projetadas para cada região do país”, afirma ela.
O secretário executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, ressalta que houve uma sucessão de eventos extremos nos últimos anos, incluindo temporais no Recife, na Bahia e no norte de Minas Gerais. Segundo Astrini, a comprovação de que um evento específico está relacionado às mudanças climáticas é uma conclusão que nem sempre fica clara, mas o acúmulo de eventos como esses já é considerado consequência das alterações no clima por especialistas.
“Estamos vendo isso de forma contínua no Brasil e ao redor do mundo também. No ano passado, o Paquistão ficou com um terço do país totalmente submerso por enchentes recordes. No mesmo período, entre a Etiópia e o Quênia, houve seca recorde. Então, já estamos vendo um comportamento de clima extremo que, no Brasil, está trazendo alguns momentos de seca, mas muita chuva”, diz. “Os temporais causam essa tragédia imediata, com deslizamentos que têm um custo em vidas que é muito mais mensurável, mas a questão da seca no Brasil tem impacto também preocupante. O Brasil é um país muito dependente das chuvas, principalmente por conta da geração de energia elétrica. Podemos ter crises hídricas, energéticas e na agricultura.”
Quem mais sofre?
A previsão dos pesquisadores é que esse problema de escala global terá como principais vítimas aqueles que já acumulam outras vulnerabilidades sociais, como menor acesso à saúde, a moradias seguras, a empregos formais e a infraestrutura urbana.
“As populações mais expostas são as mais pobres. É a população preta, é a população periférica, é a população que sofre mais com desigualdade social e com racismo. E são as mulheres, principalmente. As mudanças climáticas são uma fábrica de gerar pobreza e desigualdade social”, destaca Astrini.
Para o especialista, “o mais cruel é essas pessoas são as que menos contribuem para o problema.
Quem mais contribui com o problema é quem pode sair de helicóptero da Barra do Sahy [SP]. Quem polui o planeta são as pessoas mais ricas, e essas pessoas vão se adaptar mais facilmente. Elas perdem a casa, recebem o seguro e compram uma casa de praia em outro local. E as pessoas que consomem menos e têm uma pegada menor de carbono ficam com a maior parte da conta.”
Fortes chuvas provocaram um deslizamento de terra atingiu casas, barcos e balsas em Abaetetuba, na manhã de domingo, 26. Segundo a prefeitura da cidade, não há feridos e, por precaução, houve evacuação de emergência dos moradores no entorno. A área afetada pelo desastre era considerada de risco, mas muitas famílias continuavam morando no local devido à falta de opções de moradia, como noticiou o DOL.
Os temporais também fizeram com que sete municípios paraenses do Nordeste e do Baixo Amazonas já decretassem situação de emergência, segundo O Liberal.
Natalie Unterstell acrescenta que crianças e idosos também estão entre os grupos vulneráveis e concorda que as classes sociais de menor renda serão mais afetadas por terem menos recursos para se proteger e reagir a eventos climáticos extremos. Nesse contexto, a desigualdade racial também é um fator a ser considerado, diz a pesquisadora.
“Ao pensar na gestão desse risco, é preciso pensar nesses grupos sociais.”