Levantamento da Agência Pública, da revista “piauí” e do site Poder 360 mostra que ao menos 60 empresas certificadas pelo Conselho de Manejo Florestal (FSC), ONG mundialmente conhecida que atesta a exploração responsável de produtos florestais, já foram autuadas pelo Ibama. Juntas, somam mais de R$ 100 milhões em multas por todo tipo de infração: desmatamento ilegal, transporte de madeira sem documentação, fraudes em guias florestais e grilagem de terras.
A apuração global, que foi feita em parceria com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e com os projetos Data Fixers e Fiquem Sabendo, revelou que, desde 2004, mais de 300 empresas de produtos florestais certificadas foram acusadas de crimes ambientais e outras infrações.
No caso do Brasil, os dados usados na análise consideram todas as multas registradas no sistema do Ibama até dezembro de 2022, independentemente do status atual de cobrança. O registro da multa não significa necessariamente que a empresa é culpada. Ela pode recorrer da decisão e, eventualmente, a multa pode ser anulada.
A reportagem mostrou diversas empresas com infrações ambientais registradas no Pará, que utilizam o certificado da FSC para se mostrarem empenhadas com a causa ambiental quando, na verdade, agem no sentido oposto.
Madeireira de Tucumã usou selo como argumento em processo
Em Tucumã, a madeireira Juruá Florestal, que segundo o Ministério Público Federal devastou cerca de 5 mil hectares de floresta e construiu mais de 100 km de estradas para escoar madeira ilegal, tornou-se uma das primeiras companhias desse tipo no Brasil a ser certificada pela FSC, diz a Agência Pública. O certificado funciona como uma garantia de que a madeira da empresa não foi desmatada ilegalmente nem extraída por trabalhadores em condições degradantes.
Ocorre que a nova empresa, mesmo certificada pela FSC, manteve o antigo padrão de infrações. Entre 2000 e 2017, a Juruá foi multada doze vezes pelo Ibama por destruir floresta sem autorização do poder público e transportar madeira sem documentação. Ao todo, as multas aplicadas nesse período somaram R$ 1,6 milhão em valores nominais.
O certificado da FSC acabou servindo como um salvo-conduto para as fraudes. Enquanto cometia infrações em série, a Juruá se valia da grife FSC para informar aos seus clientes dentro e fora do Brasil que explorava madeira de forma legal e sustentável. É um caso típico do que os ambientalistas chamam de greenwashing (lavagem verde).
A FSC afirma que, quando uma empresa certificada é acusada de irregularidades, o certificado de boas práticas ambientais é suspenso ou cancelado. Mas não foi o que aconteceu com a Juruá. Ao longo de dezessete anos, a empresa renovou periodicamente seu certificado, mesmo acumulando multas do Ibama e ao menos uma condenação por crime ambiental nesse período.
Procurada pela reportagem, a Juruá afirmou, por meio de nota, que não recebeu multas ambientais desde a última certificação da FSC, ano passado. Ressaltou, além disso, que “nenhuma empresa deve sofrer discriminação por ter sido autuada por órgãos de fiscalização antes do término do processo recursal”.
Prisão de sócios não foi suficiente para perda do certificado
Entre as madeireiras certificadas pela FSC que acumulam multas, a Alecrim Indústria de Madeiras não apenas foi autuada dezenas de vezes, como seus donos, os gaúchos Aldir Schmitt e Milton Schnorr, cumpriram pena em regime semiaberto em Santarém (PA), condenados por crimes ambientais. Mas, mesmo assim, a empresa não perdeu o selo da FSC, emitido em 2015.
As infrações são diversas: venda de madeira sem licença adequada, exploração de madeira em terra indígena sem autorização e armazenamento irregular de madeira. Quase todas foram registradas no Pará. Muitas já foram pagas, mas algumas ainda se encontram em processo de julgamento no Ibama.
Os donos da Alecrim aparecem no quadro societário de duas outras empresas do mesmo ramo. Uma delas — a Algimi Florestal — acumula oito multas e já foi condenada na Justiça por poluir um igarapé. A despeito das condenações, Aldir Schmitt constava, até abril de 2022, como vice-presidente da Associação das Indústrias Madeireiras de Santarém (Asimas).
Procurada pela reportagem, a Alecrim enviou uma nota alegando que “os autos de infração [do Ibama] são controversos e passíveis de nulidades, emitidos, ao nosso ver, por equívoco ou interpretação equivocada do agente autuador”. Quanto à prisão dos dois sócios da empresa, a nota diz que “foi injusta e arbitrária, ainda assim já cumprida, não devendo os pretendidos autores nada à Justiça”.
Ibama diz que empresa “esquentou” madeira ilegal
Assim como a Juruá Florestal e a Alecrim, a Pampa se vende como uma empresa sustentável. Fundada em 1987 pelo empresário gaúcho Demorvan Tomedi, a madeireira é um caso de sucesso. Prosperou com a exportação de madeiras e acumula hoje um capital social de R$ 34 milhões, um parque industrial de 100 mil m2 e um porto privado no Pará. Mas, assim como as outras empresas, acumula infrações ambientais. Foi multada doze vezes pelo Ibama, sendo quatro delas depois de ter obtido seu certificado FSC, em 2012.
As multas recebidas pela Pampa somam R$ 5,1 milhões, em valores nominais. A maioria dos casos é por fraudes no Sisflora: segundo os agentes do Ibama, a empresa “esquentou” madeira retirada ilegalmente de áreas próximas à Rodovia Transamazônica.
Por meio de nota, a Pampa afirmou que todas as autuações do Ibama, bem como as condenações judiciais, estão em fase de recurso, e que a empresa “foi certificada e se mantém certificada porque cumpre o padrão” da FSC.
Ao ICIJ, FSC disse desconhecer situação das empresas
O Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) perguntou à FSC se o certificado de boas práticas ambientais ainda tem algum propósito, já que várias empresas cometeram infrações e não perderam o selo. Na resposta, a entidade alegou que, só nos últimos cinco anos, 88 empresas tiveram seus certificados suspensos devido a infrações ambientais.
Os mecanismos de controle, segundo a entidade, vêm se tornando mais rígidos nos últimos anos.
“A FSC está guiando novas tecnologias para a identificação de madeira, de forma que sua proveniência possa ser cientificamente atestada. A FSC também está desenvolvendo uma ferramenta baseada no blockchain para monitorar dados em tempo real sobre transações que acontecem entre diferentes detentoras de certificados”, diz a nota.
Questionada sobre o uso do certificado para a prática de greenwashing, a entidade afirmou apenas que o selo de boas práticas ajuda no combate ao desmatamento e à degradação ambiental.
“Nossas exigências garantem que as empresas de manejo florestal certificadas mantenham ou aumentem a estrutura, função, biodiversidade e produtividade de suas florestas.”
A FSC afirmou que suas políticas também garantem que os direitos de trabalhadores e comunidades indígenas sejam respeitados. Mas ressaltou:
“A FSC não alega que pode resolver sozinha problemas de múltiplas camadas como o desmatamento e reconhece a necessidade de que muitos atores e stakeholders se envolvam com essa empreitada.”
No caso específico do Brasil, o ICIJ perguntou à FSC como é possível que empresas certificadas acumulem tantas multas, mas a entidade disse que não estava informada sobre o assunto:
“Não estamos cientes dessas investigações pelo Ibama que podem ou não ser relevantes para as atividades cobertas por nossos padrões”, afirmou a entidade.
A FSC alegou ainda que suas normas e procedimentos poderão ser atualizados para que se adequem melhor à realidade brasileira.
Fonte: Allan de Abreu, Bernardo Esteves, Guilherme Waltenberg, Mario Cesar Carvalho, Rafael Oliveira, Luiz Fernando Toledo, da Agência Pública