Por Gisele Coutinho
“Eu vim morar em Belém para participar de um programa do governo, em 2005, para discutir a inclusão digital em comunidades indígenas, quilombolas, escolas do Estado, e não consegui mais ir embora depois de conhecer a Amazônia preta. Acabei fundando em 2009 a Casa Preta, um quilombo urbano que discute terra, água e comunicação”.
Foi assim que Don Preto, nascido Anderson de Sousa, em Campinas (SP), há 41 anos, sentiu pulsar ainda mais sua ancestralidade negra, quando pisou em Belém do Pará. Foi o que ele contou ao Pará Terra Boa por ocasião do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
Também pudera. A Região Norte do Brasil concentra a maior fatia de pessoas negras do País. No Pará, 82% da nossa população se declara negra, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do segundo semestre de 2020, e elaborados pelo Dieese.
“Ser preto na Amazônia é viver uma dicotomia. Você vê um grupo como o Cedenpa (Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará), por exemplo, comandado por mulheres pretas, guerreiras, que estão aí há décadas lutando para poder colocar o negro no jogo, nos direitos e nos deveres, na universidade e trabalhando autoestima. Mas, ao mesmo tempo, você vê um sistema que é embranquecido”, diz Don Preto, que mora na Ilha de Caratateua, região de Outeiro, em Belém.
Técnico em Publicidade e Propaganda e arte-educador, ele fez da floresta e da preservação dela seu modo de vida. Ali, praticamente tudo que consome, da comida à bucha para o banho, vem do seu quintal, onde planta, inclusive, açaí para seu consumo.
Ferramenta de luta
Para engrossar o caldo da luta antirracista no Pará, o Estatuto da Equidade Racial foi publicado outro dia mesmo, em 12/11 no Diário Oficial do Estado. Conquista histórica, o regulamento nasceu de reivindicações do movimento negro do Pará.
“Acho um avanço a criação do estatuto, mas, por outro lado, fico triste com a dicotomia que é viver nesse País, que você luta pra caramba para estar dentro do jogo, mas quem manda no jogo não é você. É como ter uma lei que condena o racismo, mas ninguém é preso por racismo em um país racista. É difícil ser positivo diante dessa dualidade. Mas entendo que o meu papel dentro do Brasil é ganhar espaços e plantar um pouco de indignação na molecada, para não aceitar a injustiça, dentro de direitos e deveres. O racismo estrutural no Brasil interfere para que essas leis funcionem de fato”.
No mesmo campo de batalha está também Kátia Penha, quilombola, coordenadora Nacional da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). Ela “plantou indignação”, como Don Preto tem feito no Brasil, do outro lado do Atlântico, mais precisamente em Glasgow, na Escócia, que sediou nas duas primeiras semanas de novembro a Conferência do Clima da ONU (COP26). Sua participação no evento foi histórica porque introduziu as reivindicações dos quilombos pela regularização de suas terras na agenda ambiental, uma vez que os quilombolas e povos indígenas são os maiores guardiões das florestas.
“O modo de vida da comunidade quilombola é muito importante. A COP mostrou que é preciso dialogar principalmente conosco, que defendemos o ambiente aqui no nosso território. A COP é um espaço de negociação e essa negociação não está nas nossas mãos. O governo faz acordos climáticos e apresenta metas ambiciosas que não serão cumpridas, pois não inclui o povo da Amazônia. É contraditório quando o Brasil apresenta isso para o mundo. Mas, ecoamos lá a nossa voz, por meio da Conaq e do movimento negro brasileiro. Não há negociação sobre clima quando não há regularização de terras quilombolas. Nós mantemos a floresta de pé”, ressalta.
A ativista condena a existência do chamado racismo ambiental. Trata-se, como explica a professora Dulce Pereira* ao site “Congresso em Foco“, do exercício do poder por meio da retirada de direitos de grupos humanos nos territórios que ocupam. Comunidades são vulnerabilizadas, deslocadas, expulsas, submetidas a condições insalubres. Moradores são assassinados, subjugados por violência, com base em sua origem étnica. Esta forma de racismo é operada, por exemplo, por meio de legislação e aplicação da lei, constrangimentos, exposição a resíduos tóxicos, venenos e poluentes, depreciação dos conhecimentos ancestrais e desqualificação dos valores consolidados através das gerações, para interagir nos territórios.
“A população paraense pode saber: estamos juntos e este novembro está sendo muito importante para denunciar ao mundo o racismo ambiental que está impregnado em todas as esferas estruturais desse Brasil”, conclui Kátia.
* Arquiteta, ambientalista, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto (MG), onde coordena o Laboratório de Educação Ambiental. Primeira embaixadora negra do Brasil, foi secretária-executiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Foi suplente do ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e presidiu a Fundação Cultural Palmares. Mãe, feminista e ativista do Movimento Negro Unificado, integra várias redes nacionais e internacionais de pesquisadores e cientistas. Seu principal tema de estudos, nos anos mais recentes, tem sido as contaminações e desastres ambientais causados por rompimento de barragens.
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