O ano de 2022 começou com uma ressaca da chamada “polêmica do Bradesco”. Dois dias antes do Natal, o banco veiculou uma campanha nas redes sociais pela diminuição do consumo de carne bovina no Brasil, chamada de “Carne Carbono Neutro”, por causa da alta emissão de gases de efeito estufa (GEE) pelo gado.
A reação dos pecuaristas foi imediata: organizaram churrascos na porta de agências do banco em Mato Grosso, São Paulo, Pará, Tocantins e Minas Gerais. Diante da repercussão, o Bradesco decidiu suspender a campanha publicitária. Veja o que dizia a peça:
Na sequência, o banco publicou uma “carta aberta ao agronegócio brasileiro”, em que diz que “ao longo de seus quase 79 anos de história o Bradesco apoiou de forma plena o segmento do agronegócio brasileiro, estabelecendo parcerias sólidas e produtivas”.
A instituição bancária também tirou o corpo fora da campanha que leva sua assinatura. “Contudo, nos últimos dias lamentavelmente vimos uma posição descabida de influenciadores digitais em relação ao consumo de carne bovina, associadas à nossa marca. Importante dizer que tal posição não representa a visão desta casa em relação ao consumo da carne bovina”, diz o documento.
Várias entidades do setor agropecuário zombaram do banco nas redes, como a Associação dos Criadores do Mato Grosso, Nelore Mato Grosso, Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), sindicatos rurais, entre outras, com manifestações batizadas de “Segunda Com Carne”, em que foram distribuídos pedaços de carne para a população em algumas cidades. Em tempos de filas de osso e desaparecimento da carne da dieta do brasileiro, a ação até que fez a alegria de muita gente.
Pano pra manga
Como o assunto rende pano pra manga, é preciso contextualizar o movimento do banco, afinal, várias gigantes do setor, como a JBS e Marfrig, lançaram iniciativas nos últimos anos para conter o avanço das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera.
O próprio Bradesco, junto ao Santander e Itaú, comemoraram na COP26, ocorrida em novembro passado, o aniversário de 1 ano do Plano Amazônia. O documento lançado pelo trio busca estimular iniciativas que busquem atrair investimentos em infraestrutura e produção sustentáveis e a adoção de diligências para evitar o fluxo de capital para atividades ilegais e predatórias. Ou seja, a reação da instituição financeira de tirar a nova campanha do ar vai contra suas própria diretrizes lançadas há um ano.
Além disso, a empresa brasileira Embrapa também está nessa batalha há mais de uma década com instruções para que o produtor tenha ganhos de produção com maior controle de emissão desses gases. Isso quer dizer que o problema já está sobre a mesa de uma das maiores instituições de pesquisa científica do Brasil, com adesão de grande parte do agronegócio brasileiro a seu protocolo, afinal, ninguém quer perder dinheiro e mercado.
O próprio Ministério da Agricultura traçou como meta a redução dos GEE com o chamado Plano ABC. O documento tem por finalidade a organização e o planejamento das ações a serem realizadas para a adoção das tecnologias de produção sustentáveis, selecionadas com o objetivo de responder aos compromissos de redução de emissão de GEE no setor agropecuário assumidos pelo país.
Em outra raia, há também um despertar global de consumidores com a origem dos produtos que consomem, o que inclui a carne. Por isso mesmo, o setor tem se ajustado a esses novos tempos no mundo inteiro.
É preciso ainda levar em conta que as áreas de pasto ocupam 75% do que foi desmatado nas terras públicas não destinadas da Amazônia, segundo estudo lançado em outubro, por pesquisadores do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), que mostra o avanço do desmatamento nessas áreas na última década e seu peso para o agravamento das mudanças climáticas.
No entanto, há uma parcela do agro que se sente ofendida sempre e quando esse assunto ganha o noticiário, a ponto de fazer o Bradesco mudar de direção. Para piorar o lado deles, a Companhia Nacional de Abastecimento, Conab, informou no dia 29/12/21, que o brasileiro bateu recorde nos últimos 25 anos de redução no consumo de carne. Se em 2006, por exemplo, foram 42,8 quilos de carne consumidos por habitante, em 2021 foram 26,5 quilos/habitante.
Contra a maré
A Embrapa já alerta há tempos que a pecuária é considerada uma das fontes emissoras desses gases, especialmente por causa do gás metano gerado no processo de digestão dos ruminantes. Diz que a atividade pode compensar suas emissões ao integrar a produção com o plantio de árvores e manejo adequado das pastagens, por exemplo.
De olho nessa solução, cientistas da Embrapa Gado de Corte (MS) desenvolveram as diretrizes para compensar as emissões geradas no campo, baseando-se em experimentos com medições e estimativas de emissão e absorção de carbono-equivalente envolvidas na pecuária. O resultado foi o protocolo Carne Carbono Neutro, que tem como base os sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta, ou silvipastoris. A propriedade pode pleitear o uso do selo CCN após a avaliação e aprovação de uma certificadora independente.
A presença de árvores integradas ao sistema produtivo é uma das exigências do protocolo. O produtor pode optar por integrar a pecuária com floresta (IPF) ou ainda inserir lavoura no sistema, conhecido como ILPF ou integração lavoura-pecuária-floresta.
Os pesquisadores explicam que as árvores têm um papel crucial no sistema produtivo, pois será principalmente em seus troncos que ficará armazenado o carbono retirado da atmosfera e contabilizado no balanço para neutralizar as emissões. Veja abaixo outras recomendações do protocolo:
Protocolo da Embrapa:
- Caso o produtor pense em implantar o sistema ILPF em uma área de pastagem, deve ter o cuidado de colocar os animais somente quando as árvores estiverem com, no mínimo, seis centímetros de diâmetro. Essa medida assegura que a entrada dos animais no sistema não causará danos às árvores, diminuindo o valor comercial da madeira que será produzida.
- É também exigida a apresentação do inventário florestal anual contínuo, para fins de monitoramento do sequestro de carbono.
- É obrigatório o registro dos teores de carbono no solo, por meio de amostragens bianuais. Esses valores não podem diminuir ao longo do tempo. Plantas invasoras na área da pastagem devem ser controladas, e o produtor deve fazer a reposição de nutrientes no solo.
- Devem ser registrados o uso de insumos agrícolas, nutricionais e veterinários e de controle zootécnico. É obrigatório o controle, inclusive, da saída de animais para qualquer outra área. À certificadora deve ser enviada uma listagem com a identificação individual dos animais e toda movimentação deles.
- O calendário sanitário de vacinas para o rebanho deve ser seguido à risca, e de acordo com a região e estado da fazenda. Deve haver registro das vacinas e a aplicação deve ser feita na “tábua do pescoço”, lugar correto para isso, de acordo com os especialistas.
- A produção deve estar 100% em conformidade com o Código Florestal Brasileiro (Lei nº 12.651/2012) e apresentar comprovante de regularidade junto ao Cadastro Ambiental Rural (CAR).
- A fonte principal de alimentação para os animais deve ser o pasto, e eles devem ser suplementados o ano todo. A suplementação alimentar não deve exceder a taxa de 2% do peso vivo, sendo permitida a terminação com suplementação (“confinamento à pasto”) por até 105 dias. A água fornecida aos animais deve ser de boa qualidade e por fluxo corrente ou, na impossibilidade, por renovação frequente.
- O documento salienta que atenção especial deve ser dada à implantação e condução da forrageira, pois seu manejo inadequado pode acarretar degradação da pastagem, inviabilizando a concessão do selo. Por isso, devem ser respeitadas as alturas mínimas de pastejo de acordo com a espécie e cultivar utilizada. A Embrapa possui ferramentas que auxiliam o produtor nessa tarefa, como a régua de manejo de pastagem.
Pesquisa
Desde 2010, ano de regulamentação da PNMC (Política Nacional sobre Mudança do Clima), que estabeleceu a primeira meta doméstica de redução de emissões da história no Brasil, o país elevou em 28,2% a quantidade de gases de efeito estufa que despeja na atmosfera todos os anos.
O desmatamento, em especial na Amazônia, puxou o crescimento das emissões em 2019. A quantidade de gases de efeito estufa lançada na atmosfera pelo setor de mudança de uso da terra subiu 23% em 2019, atingindo 968 milhões de tCO2 e – contra 788 milhões em 2018.
As mudanças de uso da terra, puxadas pelo desmatamento, seguem sendo as principais responsáveis por emissões no Brasil, com 44% do total. Desde a PNMC, as emissões deste setor cresceram 64% no Brasil, em que pese a meta, inscrita na lei, de reduzir o desmatamento na Amazônia em 80% em 2020 comparado à média entre 1996 e 2005.
A agropecuária vem em segundo lugar, com 598,7 milhões de toneladas de CO2 e em 2019, um aumento de 1,1% em relação às 592,3 milhões de toneladas emitidas em 2018. As emissões diretas do setor, fortemente ligadas ao rebanho bovino, representaram 28% do total de gases de efeito estufa do Brasil.
Desde a regulamentação da PNMC, em 2010, o setor de agropecuária viu um aumento de 7% nas suas emissões, causado sobretudo pela expansão do rebanho. Somando-se as emissões da agropecuária com a parcela das emissões dos demais setores relacionada ao setor agro, o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) conclui que a atividade rural – seja direta ou indiretamente – respondeu por 72% das emissões do Brasil no ano passado. Isso significa que, após dez anos de política de clima, o Brasil ainda tem o mesmo tipo de curva de emissões de antes da adoção da política.
O SEEG é uma iniciativa do Observatório do Clima que compreende a produção de estimativas anuais das emissões de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil, documentos analíticos sobre a evolução das emissões e um portal na internet para disponibilização de forma simples e clara dos métodos e dados do sistema.
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