O poeta amazonense Thiago de Mello morreu nesta sexta-feira, 14/01, aos 95 anos, em sua casa, em Manaus (AM). Seu currículo é tão extenso quanto seu tempo de vida. Nascido em Barreirinha (AM), ele foi diplomata, jornalista, editor, poeta e romancista da natureza, da floresta amazônica, dos povos e saberes tradicionais. O velório é realizado hoje no Palácio Rio Negro, Centro Histórico de Manaus, e o enterro, segundo a família do autor, está previsto para o sábado de manhã, em horário ainda a ser definido. Nos últimos anos, ele enfrentou os sintomas do Alzheimer e outros problemas de saúde.
O governador Wilson Lima e o prefeito de Manaus, David Almeida, decretaram luto oficial de três dias pelo falecimento do poeta. O poeta é membro da Academia Amazonense de Letras e recebeu o destaque de Personalidade Literária do Prêmio Jabuti, em 2018. O autor foi reconhecido pelo conjunto da obra, que é referência na literatura regional brasileira.
Sua obra está traduzida em cerca de 30 idiomas. Mello morou no Chile (exilado), Argentina, Portugal, França e na Alemanha. Nos anos 1950 e 1960, sua obra era conhecida entre os maiores autores brasileiros, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e José Lins do Rêgo.
Após o exílio na Europa, em 1978, voltou a Barreirinha. Premiado, um de seus poemas mais famosos é “Os estatutos do homem (Ato Institucional Permanente)”, escrito após o golpe de 1964, como resposta ao autoritarismo do regime. Leia abaixo:
Os Estatutos do Homem
A Carlos Heitor Cony
Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.Artigo II.Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Santiago do Chile, abril de 1964
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).