Sabe aquela ideia de que “o Brasil alimenta o mundo” por ser o maior produtor e exportador de soja? Pois é… essa frase virou conversa para boi dormir com um estudo publicado nesta quinta, 12/05, pela revista científica “Nature Food”.
A pesquisa tem um recado crucial: o mundo está cada vez mais abrindo terra para saciar a fome de animais e produzir processados, enquanto reduz o espaço para produtos que alimentam diretamente o ser humano. O Brasil não alimenta o mundo porque o mundo não está sendo devidamente alimentado, assim como os nutrientes da soja e derivados não são suficientes para que uma pessoa esteja devidamente alimentada.
A colheita para processamento (ração animal, xarope de milho rico em frutose, óleos hidrogenados), exportação e uso industrial (etanol, bioplásticos, produtos farmacêuticos) aumentou globalmente. Se a tendência continuar até 2030, apenas 26% das calorias globais colhidas poderão ser para consumo direto de alimentos.
A descoberta acende um sinal de alerta para a desnutrição em vários países, mostrando que plantações com uso direto de alimento são insuficientes para cumprir com o segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas), cuja meta é a segurança alimentar para todas as pessoas até 2030.
É assim no Brasil
A produção agrícola brasileira voltada à alimentação direta nos anos 60 ocorreu com maior proporção no interior do país – padrão que foi alterado no Brasil na década de 2010, para maior destinação de áreas agrícolas à indústria. Inversão que reflete a onda de commodities, apontam os autores, acompanhando um tipo de produção que antes só aparecia na costa do País. No Centro-Oeste, a lavoura que viraria comida passou a se voltar ao processamento e à exportação. Nas regiões Nordeste e Sudeste, a cultura se direcionou também ao processamento e à alimentação animal.
O aumento da riqueza para uns poderosos e a crescente demanda da classe média por alimentos processados, carne, laticínios e outras commodities estão criando uma pressão crescente para que produtores agrícolas se especializem em culturas de alto rendimento, cultivadas para outros usos que não o consumo direto de alimentos.
Na medida em que o setor responde às expectativas de consumo, indica o estudo, populações sob insegurança alimentar seguem sendo negligenciadas – especialmente em áreas nas quais a pobreza também se faz presente na vida dessas pessoas, como regiões de África, América Central e Ásia.
Alimentando animal
Mesmo que lavouras com uso para alimentação animal possam ter parte das calorias direcionadas à alimentação humana, há uma perda energética de 2,5 a 25 vezes nesse processo, se comparado à destinação direta da produção à alimentação humana.
“Muitas dessas calorias destinadas à alimentação animal são transformadas e redestinadas como produtos alimentícios, porém, acompanhados de uma grande perda energética. Assim, não consideramos no estudo como uma destinação direta de alimento”, afirma a pesquisadora no IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) Andrea Garcia, que integra um grupo de cientistas que mapeou os 10 principais produtos agrícolas do mundo para o estudo.
Cevada, mandioca, milho, óleo de palma, canola, arroz, sorgo, soja, cana-de-açúcar e trigo são os dez principais cultivos no mundo e representam atualmente mais de 80% de todas as calorias das culturas em colheita, mas nem todas essas calorias e nutrientes colhidos são usados para consumo direto de alimentos por pessoas.
A pesquisadora brasileira reforça a necessidade de revisão de políticas internas, tanto de destinação de produtos agrícolas, como de financiamento de pesquisas em produtividade agrícola de países produtores.
Mundo
A pesquisa estima que pelo menos 31 países provavelmente deixarão de atender às suas necessidades alimentares até 2030, mesmo que todas as calorias colhidas no país sejam destinadas para o consumo direto de alimentos.
Entre eles estão África do Sul, Arábia Saudita, Haiti, Iraque e Taiwan. Outros 17 países não serão capazes de atender às demandas alimentares de seu crescimento populacional esperado no mesmo período, o que poderá piorar a insegurança alimentar em suas populações – como Chile, Espanha, Moçambique, Nova Zelândia e Portugal. O Brasil está fora das duas projeções, mantendo-se autossuficiente na produção de alimentos.
Recado
Como afirma o diretor executivo no IPAM, André Guimarães:
“Com a Embrapa, universidades de Agronomia e outros centros de pesquisa, passamos de um país importador para sermos um dos maiores produtores e exportadores de commodities agrícolas do mundo, em 50 anos. Deveríamos estar usando essa capacidade científica para ampliar nossa produção de alimentos e posicionar o Brasil como parte da solução desse desafio futuro”.