Imagine você cortar toda a mata de beira de rio para facilitar a construção de barragens, reservatórios, infraestruturas de irrigação e abastecimento de rebanhos. Imaginou? Que tragédia seria, não?
Pois é isso que estão tentando fazer lá no Congresso, em Brasília. A Comissão de Agricultura (CRA) aprovou, na manhã de quinta, 7/07, um projeto que permite exatamente isso. Para pesquisadores e organizações da sociedade civil, a aprovação da proposta vai acirrar a disputa por fontes de água e agravar as crises hídrica e energética que o país vem sofrendo.
De autoria do senador ruralista Luis Carlos Heinze (PP-RS), o Projeto de Lei (PL) 1.282/2019 prevê classificar essas obras como de “utilidade pública e interesse social”, o que reduzirá as restrições hoje existentes à supressão de parte das Áreas de Preservação Permanente (APPs) nas propriedades rurais. Ah, detalhe, leia aqui quem é Luis Carlos Heinze.
A perda de vegetação nessas áreas coloca em risco outros usos da água, como o abastecimento humano e a geração hidroelétrica. Também provoca assoreamento e erosão dos rios, o que pode agravar enchentes e inundações.
A proposta foi aprovada por 8 votos a 1. Apenas Eliziane Gama (Cidadania-MA) foi contra. Ela também apresentou um requerimento para a realização de audiência pública, atendendo ao pedido de cientistas e ambientalistas para aprofundar o debate sobre o tema, mas ele foi rejeitado. Na véspera, em conversa com representantes de organizações não governamentais, o relator, Espiridião Amin (PP-SC), indicou que poderia aceitar a solicitação, mas não foi o que fez na sessão.
Votaram a favor do PL Heinze, Amin, Kátia Abreu (PP-TO), Luiz Carlos do Carmo (PSC-GO), Roberto Rocha (PTB-MA), Wellington Fagundes (PL-MT) e Fábio Garcia (União Brasil-MT). Nenhum outro parlamentar da oposição participou da sessão.
Agora, o PL 1.282 segue direto para a Câmara, a não ser que um recurso seja apresentado para que vá ao plenário.
Efeitos da estiagem
Amin defendeu que o projeto pretende atenuar os efeitos das estiagens para os produtores rurais e que não teria impacto na geração hidrelétrica, embora seus efeitos possam afetar a disponibilidade de água em geral no País.
“Este projeto conseguiu chegar ao razoável equilíbrio entre a preocupação ambiental, que eu tenho também, e a redução da insegurança hídrica em pequenas propriedades”, disse.
O raciocínio então é assim: primeiro você desmata, depois tem a surpresinha de que, derrubando árvore, o calendário da chuva fica todo desregulado, com algumas regiões, como a do Sul do senhor Amim, perdendo milhões de reais com a estiagem. Como se resolve a falta de água? Para os senadores, cortando mais mata. Sobre desmatamento, nenhum pio, como se ele fosse provocado por extra-terrestres.
“Uma lei desse porte, autorizando represamento indiscriminado de rios para irrigação e abastecimento de rebanhos, seria como furar a caixa d’água do Brasil. Poderia gerar inúmeros conflitos judiciais entre entes da federação, ameaçar o pacto federativo e violar funções dos órgãos de controle”, critica Kenzo Jucá, assessor legislativo do Instituto Socioambiental (ISA).
“O agronegócio usa cerca de 80% do total da água consumida no País, segundo dados oficiais. Esse índice seria ampliado, caso o projeto vire lei. Os 20% restantes do consumo, em média, são para abastecimento urbano e indústria. Vai faltar água para alguém, é obvio”, completa.
Jucá explica que as mudanças incluídas no novo relatório apresentado na sessão da CRA, relativas à exigência de licenciamento estadual e a outorga de uso d’água, além da conformidade a normas dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente (Consemas) e planos de bacia, não garantem a segurança hídrica para esses barramentos de rios.
‘Boiadas’ antiambientais
O PL é mais uma das “boiadas” antiambientais que tiveram tramitação acelerada por decisão do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Atendendo a um requerimento da oposição, ele decidiu que o projeto passaria nas comissões de Meio Ambiente e Agricultura. Dias depois, mudou de ideia e remeteu-o apenas ao segundo colegiado, dominado pela bancada da agropecuária. É o presidente da Casa que decide em quais instâncias a proposta será apreciada.
O termo “boiada” refere-se à expressão usada pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles para orientar o governo, numa reunião ministerial em 2020, a aproveitar que a atenção da mídia estava na pandemia e enfraquecer as normas ambientais no País.
“A proposta, distribuída apenas para CRA de forma terminativa, deveria, necessariamente, passar pelo crivo da Comissão de Meio Ambiente, pois pretende alterar o Código Florestal, notadamente com impactos sobre um de seus pilares, as APPs, resguardadas pela Constituição Federal”, comenta Gama.
A aprovação do PL 1.282 na CRA faz parte da corrida de ruralistas e governo para fazer avançar proposições que reduzem controles e restrições ambientais diante das eleições de outubro, do término da legislatura e do possível fim da gestão Bolsonaro.
Em ano eleitoral, o tempo de trabalho legislativo é reduzido porque os parlamentares mergulham nas campanhas. O Legislativo fica vazio, do recesso legislativo, que deve começar em meados do mês, até o fim das eleições. Assim, há pressa para aprovar propostas que possam ser apresentadas como “trunfo” aos eleitores.
Fonte: ISA