Por Ivana Guimarães
Você conhece os benefícios das plantas alimentícias não convencionais (PANCs), de misturas amazônicas dos povos tradicionais, como a puba, e de diversas partes de frutas que costumam ser descartadas, como a casca da banana? Já identificou bem o que tem no seu quintal? Pode ter uma beldroega lá, uma língua de vaca, que pode ir para a panela e alimentar muita gente passando fome. E a folha da cenoura? Não deveria nunca ser dispensada.
O Pará Terra Boa conversou com Veranúbia Mascarenhas, nutricionista pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) que realiza oficinas e palestras na área da ecogastronomia, para entender sobre como identificar esses alimentos e como o conhecimento tradicional pode influenciar na melhora dos hábitos de saúde da população.
Identificando PANCs em solos amazônicos
Segundo a nutricionista, para começar a identificar as PANCs, primeiro, é preciso se conectar com elas, demonstrando interesse em aprender e, principalmente, olhando para as plantas que crescem pelas ruas. Veranúbia também ressalta a importância de perceber as partes comestíveis de produtos que descartamos.
“É preciso começar a tentar identificar quais são as árvores que estão perto de você e quais são as plantas que estão nascendo, que aí você começa a se conectar com isso e a entender pelo cheiro quais são os comestíveis e o que você vai fazer com elas, entendendo quais se pode comer cruas e quais se come cozidas. Quase todas são de comer, a natureza não ia jogar essa quantidade toda de planta do nada, existem vários objetivos. Um deles é para os animais comerem, uma ou outra é venenosa, algumas a gente tem que tratar antes, mas na sua grande maioria a gente pode consumir. Então, a dica que eu dou sempre é começar a se conectar. Conhecendo, por exemplo, plantas como a beldroega e a língua de vaca, que têm distribuição no Brasil todo. É importante olhar para partes de plantas comestíveis que a gente descarta, como o mangará da banana, a folha da cenoura, as raízes de várias plantas alimentícias.”
Na contramão do desperdício, a profissional de saúde expõe os benefícios de alimentos comumente descartados.
“A casca da banana é uma parte riquíssima em triptofano que a gente descarta. Uma casca de banana cozida faz um benefício para a saúde que é uma loucura. E aí tem gente comprando remédio pra melhorar o sono, para poder estar emocionalmente melhor e algumas vezes a gente só precisava comer casca de banana. Você pode fazer um chá de casca de banana madura para dormir e você vai ficar apaixonado com o resultado. A casca de banana verde também é muito útil. Quem é que olha para a banana verde? Ela tem uma substância chamada de inulina que simplesmente te organiza. Ela controla a glicemia, melhora o funcionamento do intestino, aumenta a quantidade de bactérias boas”, enumera.
Veranúbia defende que a história de cada alimento seja valorizada, destacando o papel do conhecimento tradicional.
“Nós fomos educados para só olhar o que está dentro do supermercado, que é a comida que não tem ancestralidade. Você pega uma beldroega e ela tem uma história a ser contada que faça bem pra nossa saúde. A comida do mercado, não. Porque nas plantas têm histórias dos tempos que choveu muito e de anos muito secos. Algumas se tornaram extremamente resilientes e com muitos compostos bioativos por conta do aprendizado que ela teve com o solo, com o céu, com a lua, com a chuva. Então, a planta traz uma ancestralidade e a gente também. O que somos vem de como os nossos ancestrais se comportaram, o que eles sofreram e isso a gente está aí pra contar”, reflete.
Puba, um presente dos povos originários
Entusiasta do consumo de puba, a nutricionista conta que ensina seus pacientes a preparar a massa e fala sobre o processo de fermentação da mandioca. A puba é a massa resultante dessa fermentação natural das raízes da mandioca.
“Os nossos povos originários tratavam a mandioca fazendo-a fermentar. Ela tem uma quantidade de ácido cianídrico que chega a 450 miligramas em 100 gramas de raiz. Então é tóxico demais, chegando a ser mortal. Por isso, os indígenas a fermentaram, transformando em puba ou carimã. A puba é um alimento incrível com mais de 116 lactobacilos. Esses lactobacilos, que às vezes a gente consome em produtos para corrigir o intestino, são todos encontrados dentro de um caldo de puba. Os povos originários nos deixaram um dos melhores presentes que é a puba ou em alguns lugares chamada de carimã. Eu sou nutricionista funcional e dentro do meu consultório ensino para os meus pacientes como fazer ela. Para melhorar o funcionamento intestinal, eu mando eles se conectarem com ela. Só de você estar fermentando a puba em casa, ela já melhora a saúde”, defende.
Pãozinho era com menos glúten
Alguns alimentos tiveram seu manejo muito alterado, o que consequentemente fez com que eles perdessem valor nutricional. Veranúbia diz que o pãozinho de cada dia é um grande exemplo disso. Segundo ela, o trigo usado no passado tinha cerca de 2% de glúten, mas a indústria percebeu que quanto mais glúten tivesse no trigo, mais ele ia ter rendimento. Por isso, hoje ele tem 400%, causando sensibilidade intestinal.
“Hoje, o nosso pão vai ter margarina, gordura trans, muito sódio, brometo de potássio, ele tem química e um trigo altamente alterado. Então nosso corpo já não reconhece mais esse alimento, inflama o nosso intestino”, diz.
Tradições africana e indígena
Os povos africanos trouxeram muito da sua tradição e isso se misturou com a cultura indígena, resultando em várias receitas. A nutricionista conta que o jeito de comer banana da terra e quiabo, por exemplo, é uma coisa muito africana.
“Eles chegaram aqui e fizeram várias junções com a culinária indígena, produzindo muitos dos temperos mais picantes, alguns tipos de pimenta e pamonhas de puba. Quando você chega em um mercado no Pará são notórias as influências africanas nos temperos, nas cores e nas misturas”, aponta.
Ela explica que esses povos incorporaram a puba que só tinha aqui na América do Sul às suas culturas, sendo o Brasil um dos maiores produtores de mandioca do mundo. Por esse motivo, atualmente a massa fermentada é muito vista nos remanescentes de quilombo.
Indústria X extrativismo sustentável
Mostrando a força da indústria contra o extrativismo sustentável, a nutricionista cita os temperos como exemplos de produtos da floresta que foram sendo substituídos por industrializados. Em sua análise, os temperos prontos mudaram o paladar do brasileiro, uniformizando os sabores, interferindo na seleção de alimentos e até no abandono das hortas.
“Antes, as pessoas iam ali na roça e temperavam sua comida com uma erva baleeira, com guasca. Ali ela tinha todos os temperos, que eram as plantas ancestrais que hoje a gente chama de PANC. Aí a indústria inventou os caldos cheios de sódio, química e glutamato monossódico, fazendo a população deixar de lado os naturais. Você chega em qualquer casa no Pará ou em qualquer lugar e as pessoas estão fazendo suas comidas com temperos prontos comprados no mercado. Mal utilizam um coentro e uma cebolinha, sendo que todos os compostos bioativos estão nesses temperos naturais. Essa é uma das coisas imperdoáveis da indústria. Quando você bota uma folha de louro no alimento, você está botando o alimento carminativo. Ele vai prevenir a formação de gases. Hoje você pega um cubinho daquele e joga dentro da sua comida e você uniformiza o paladar das pessoas. Antigamente, todo mundo plantava uma coisinha em casa, tinha um canteirinho”, diz.
Veranúbia conta que bebidas produzidas com técnicas que são passadas de geração a geração, como as cervejas indígenas, não deixam nada a desejar quando comparadas às industrializadas. Por seguirem um tempo considerável de fermentação, cervejas a base de milho, como a chica, ou à base de mandioca, como o cauim ou caxiri, têm qualidades únicas.
Produtos da floresta em evidência
De olho nos ingredientes da floresta, os chefs da alta gastronomia estão cada vez utilizando mais alimentos amazônicos, como o cumaru, em seus pratos. A especialista em nutrição considera este movimento positivo por trazer popularidade a estes sabores, mas acredita que eles ainda precisam estar mais acessíveis à população para que o consumo de ultraprocessados diminua.
“Eu acho que a tendência é crescer muito, porque hoje a gente rapidamente consegue saber quanto tem de vitamina C em uma fruta, como o camu-camu por exemplo, quantos nutrientes e compostos bioativos estão presentes. Até cinco anos atrás, a gente não encontrava quase nada. Os palmitos do açaí e algumas técnicas de preparo de peixe, como os peixes assados na palha de banana, são outro exemplo. Então hoje você já encontra muitos produtos da floresta sendo estudados, infelizmente ainda estão muito nas mesas de chefs da alta gastronomia. Eles vivem atrás dos temperos, dos cumarus, das baunilhas da floresta, buscando esses ingredientes e trazendo para restaurantes que fazem muito sucesso. Eu acho que ainda falta muito mais divulgação para que a população olhe para isso e deixe de lado a comida industrializada”, analisa.
Bioprospecção no Brasil
Em relação a bioprospecção, pesquisa para a busca de produtos naturais disponíveis para seu potencial uso nas indústrias farmacêutica, agrícola e biotecnológica, de forma a obter novos processos que apresentem elevado valor comercial, Veranúbia diz que há interesse, mas é preciso haver mais incentivos.
“Eu acho que tem gente no Brasil que já se interessa, às vezes o que não se tem são muitos incentivos. Tem projetos e grupos, mas eu acho que falta ser mais divulgado à nossa população. Então essa exploração das fontes naturais, de pequenas moléculas, todas essas informações bioquímicas e genéticas precisam ir para dentro das universidades, mas também sair de dentro delas e dialogar com as pessoas. Já que quando o povo compreende, ele valoriza. Mas para isso é preciso que a informação saia desses espaços que nem todos têm acesso para que a gente possa realmente ter um desenvolvimento sustentável”, finaliza.
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