Por Ivana Guimarães
“O progresso já chegou, mas nossas riquezas acabaram. Os igarapés estão secando, no mangal é a destruição. É culpa da devastação”. Esses versos fazem parte da música “Saudade do Passado”, cantada por Mestre Damasceno, artista popular, diretor, escritor de autos juninos e pescador paraense, considerado um dos grandes mestres da tradição oral brasileira ainda vivo,
É da comunidade do Salvá, na Ilha do Marajó, que vem o artista, que canta sobre as mudanças climáticas, secas e desmatamento que acontecem na região.
Se é certo que a água rege a vida em todos os locais do mundo, no Marajó, marés, chuvas e períodos de estiagem determinam todos os aspectos do viver. Nos últimos tempos, porém, a realidade do desmatamento se impõe: segundo um estudo publicado no início do ano, mais de um terço da floresta amazônica sofre com degradação causada por humanos e secas.
Na música Saudade do Passado, ele fala sobre quando conheceu Salvaterra, há 55 anos, “quando a cidade ainda era menina”, nas palavras do poeta.
Eu cheguei aqui e vi tanta fartura dentro dos nossos lagos. Nossas praias muito lindas com muros de areia. As nossas matas de bacurizal foram se destruindo por não se ter uma consciência. Faziam fogo debaixo dos bacurizeiros e eles foram caindo e se acabando. Nossos igarapés também foram secando e se acabando. Então eu fiz a música como um ensinamento sobre o meio ambiente pras crianças e jovens que muitas vezes não viram essa fartura”, explicou.
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Damasceno é cantor e compositor de toadas de boi-bumbá, de carimbó, xote, samba, brega e em 2023 completa 69 anos de idade e 50 de atuação na cultura popular. Com muito orgulho de ser paraense e cheio de histórias para contar, ele é o criador do Búfalo-Bumbá, a brincadeira junina que ganhou esse nome em homenagem a tradição de criação de búfalos em terras marajoaras.
Os enredos do bufálo-bumbá são comédias com críticas sociais. Com personagens como um ladrão de búfalos, pajés e vaqueiros, Mestre Damasceno conta a história do nosso povo.
Trajetória
O marajoara tem quatro álbuns gravados. Em 2021, lançou Encontro D’água, que conta na faixa Feira do Veropa” com participação especial de Dona Onete, outra grande figura da cultura popular paraense que já entrevistamos aqui no Pará Terra Boa.
Em janeiro último, lançou o álbum Búfalo-Bumbá, e a previsão é que o novo trabalho, Chegou Meu Boi, esteja disponível em todas as plataformas em meados de abril.
“Cada música minha tem algo da cultura popular. E a cultura popular que eu falo está nas plantas medicinais, nas florestas, nos animais, nas lendas. Tudo é cultura popular e o Marajó é rico nisso aí.”
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A história do artista é marcada pela superação. Aos 19 anos, ele perdeu a visão em um acidente de trabalho e em 2012 pensou em desistir de brincar de boi, já que a cultura popular não dá retorno financeiro. O interesse da própria comunidade também contou, já que é preciso reunir cerca de 25 a 30 pessoas para colocar o búfalo-bumbá na rua.
“Foi uma época que eu fiquei desmotivado do boi por falta de apoio público e também da comunidade. Muitos acham que a cultura popular traz riqueza e isso não é verdade. A gente fica feliz, torna-se conhecido, mas não fica rico. A gente faz pela vontade, às vezes passando até fome pra poder levar uma brincadeira pra rua”, refletiu.
Levando o Pará para o Rio de Janeiro
Em fevereiro, veio reconhecimento nacional: o artista foi homenageado pela escola de samba Paraíso do Tuiuti, no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Na volta, ele foi recebido com muita emoção e foi organizada uma carreata até o centro da cidade de Salvaterra, onde o mestre encontrou amigos, familiares e admiradores.
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“Eu cheguei numa parte dos maiores movimentos culturais do mundo que é o Carnaval do Rio. E pra quem sai aqui do interior, cantando carimbó, chegar a ser homenageado dentro da Marquês de Sapucaí é uma grande conquista.”
E como todo paraense quando volta para sua terra, o primeiro pedido do Mestre Damasceno ao chegar em casa foi um um caldo de bagre, o peixe que ele mais gosta.
Valorizando o que é nosso
Antes de aparecer na Marquês de Sapucaí, a vida e arte de Damasceno foram temas do documentário “Mestre Damasceno – O Resplendor da Resistência Marajoara”, lançado em 2013, com a direção de Guto Nunes. Sua dedicação à cultura popular marajoara foi reconhecida em 2010 pelo Ministério da Cultura, ao conquistar o Prêmio Maria Isabel. Seu lema é valorizar as riquezas amazônicas em primeiro lugar.
“Eu gosto de falar sobre onde eu estou e de vender nosso produto. Todo mundo sabe que a Amazônia é a região mais rica do mundo. É onde nós temos as maiores florestas, plantas medicinais que podem curar doenças e os melhores frutos do mundo. Então nós temos que saber o que é nosso”, finalizou.