Por Sidney Alves
Sob os cuidados da professora Ionete da Silveira Gama, muitos jovens do Pará aprenderam História. Sob o feitiço de Dona Onete, o mundo inteiro canta e dança suas canções. Estamos falando da mesma pessoa, dessa entidade da cultura paraense, natural de Cachoeira do Arari, que lançou seu primeiro disco aos 73 anos de idade após dedicação ao magistério durante 25 anos. Atualmente com 82 anos, Dona Onete conversou de uma maneira muito pai d’égua com o Pará Terra Boa na quarta-feira, 23/03, sobre futuro, presente e passado, passando por temas ambientais.
Seu horizonte é tão transformador que ela vai lançar um disco com um novo ritmo batizado de lambumrimbó, com a proposta de valorizar toda mulher dona de seu próprio nariz.
“Eu quero até lançar um ritmo misturando a lambada, boi-bumbá e carimbó. Dei o nome de lambumrimbó. É um ritmo nosso, uma coisa da gente. Eu quero falar também do empoderamento da mulher. Da mulher atrevida, abusada, gostosa. A mulher brasileira, que defende a sua bandeira e não nega onde nasceu porque, para mim, você tem que dizer onde que nasceu e ter muito orgulho”, reforça.
Sua Cachoeira de Arari natal fica na Ilha de Marajó, mas foi em Igarapé-Miri, terra de outro tesouro paraense, Pinduca, que Dona Onete trabalhou até se aposentar como professora de História, bem como foi secretária de Cultura do município. Ela afirma que onde quer que esteja, sempre vai defender sua terra.
“Eu tenho orgulho de ser paraense. Eu gosto de ser brasileira. Eu gosto de ser cabocla. Eu gosto de ser índia e aonde eu for, eu defenderei a nossa região Norte tão bonita e que amo demais e de paixão. Então, é bom a galera ficar esperta porque vem coisa muito boa. Aguardem porque esse disco que estou compondo vai para as cabeças de novo”, adianta.
Mas esse orgulho vem acompanhado de uma boa pitada de preocupação com a processo de degradação ambiental hoje em curso no Pará.
“A gente já vem brigando há muito tempo. Já era uma tragédia anunciada, e eu cantei sobre esta situação. Então, é através de música que eu coloco o que sinto sobre esta lixarada toda, dessa água poluída, de tudo o que está acontecendo, das barragens, das hidrelétricas que estão fazendo, é tanta coisa. E para quem vai se queixar? Não tem para quem se queixar. Mas eu fiz uns versinhos que eu já cantei sobre o assunto: ‘Eu sei que a natureza reclama e esse povo não me ama // Me polui e me desmata // Enche os meus rios de sacos, caixas e latas e aterra os meus mananciais // Eu como natureza, eu já não aguento mais’. Então, a natureza está nos devolvendo tudo aquilo que a gente fez”, diz ela de forma bem contundente.
Dona Onete guarda na memória uma Belém distinta da atual, de quando tudo era “piri”.
“A nossa terra é diferente, não tem morro, mas tem muitos igarapés, a cidade é cortada por muitos igarapés e mananciais. Basta dizer que a frente de Belém foi toda aterrada. Tudo era piri. Piri é um lugar onde tem muitos igarapés. Começou desde a Igreja da Sé, onde tudo era piri. Então, a gente fica esperando que só Deus na causa”, lamenta.
Enquanto espera, seu público só aumenta, seja no Brasil, como no Rock in Rio (2019), ou no exterior. Os sonhos artísticos da musa da música paraense são repletos de possibilidades.
“Eu estou aqui caminhando, ainda não cheguei aonde eu quero chegar. Estou pela raia cinco, eu sempre falo, mas para quem já esteve no Rock in Rio, né? Já pode dizer alguma coisa. Mas ainda falta o Lollapalooza (festival anual de música), ainda falta muita coisa, mas aqui no Pará, eu já estou reconhecida como uma grande compositora e cantora, e como é bom quando a gente vence no próprio lugar da gente, porque dizem que santo de casa não faz milagre, mas eu estou fazendo. Que bom, e a luta continua”, avisa.
Safra paraense
Mesmo sendo uma referência para nomes do Brasil todo, Dona Onete diz ter muito orgulho dos artistas da nossa terra.
“Temos vários músicos e artistas talentosíssimos aqui no Pará. Entre eles o Paulo André Barata (cantor e compositor), o maestro Waldemar, além de muitos cantores de brega que já se foram, muitos cantores de samba-canção. Mas temos aqui também um cantor de carimbó que evoluiu o ritmo, fazia composições diferentes, chama-se Pinduca. Ele fez uma mudança no carimbó.”
Ela se diz também admiradora de várias cantoras paraenses, dos mais variados ritmos.
“Temos grandes cantoras como a Joelma, a Gaby Amarantos, a Lucinha Bastos, a Nazaré Pereira, que saiu para o mundo, a Fafá de Belém. Muita coisa está acontecendo e eu espero que a nossa música não fique só aqui. A nossa música já venceu, ela já está fora do Brasil, já toca muito no exterior, porque nós estamos viajando e cantando sobre as nossas coisas.”
Atenta, ela acompanha de perto o trabalho da nova geração, que já se desponta pelo Brasil.
“Da nova geração, eu posso citar a Keila, a Natália Matos, a Aíla, a Viviane Batidão, a Valéria, como também as cantoras que cantam o brega. Além disso, os nossos músicos são multi-instrumentistas, tocando os mais variados instrumentos. Não se preocupem, a nossa música já é vitoriosa no exterior”, reforça.
Etarismo
A história de Dona Onete serve de exemplo hoje para muitas mulheres que sonham em mudar de vida após os 65 anos de idade, quando a pessoa passa a ser classificada como velha no Brasil. Para muitas, como ela, é um recomeço, não o fim da linha. Envelhecer é uma vitória, não uma derrota.
Dona Onete mostra o quanto é preciso combater o preconceito por idade, chamado de etarismo ou ageísmo, que isola mulheres do mercado de trabalho, da sociedade, dos círculos sociais e familiares, levando muitas delas à depressão e à invisibilidade. Ainda mais quando sabemos que o Brasil envelhece mais a cada década, deixando aos poucos de ser o país da juventude, para dar lugar aos idosos.
Daí a necessidade de a população feminina, mais recriminada por ser velha, buscar seus direitos, batalhar por seu lugar ao sol, denunciar o preconceito por idade, ter direito de exibir suas rugas, as marcas do tempo, sem que o mercado de trabalho cobre da mulher um padrão de eterna juventude que não deve existir no mundo contemporâneo.
O homem é sempre “charmoso” quando mostra seu cabelo grisalho, mas a mulher é rotulada de “desleixada, velha e bruxa” quando faz o mesmo. Ora, a mulher idosa quer trabalhar, ter o cabelo da cor que quiser, quer fazer sexo, ter prazer, fazer amizades, se vestir como quiser, estudar, estar nos palcos ou ampliar horizontes ainda mais revolucionários como Dona Onete. E além: ter acesso a serviço público de saúde digno.
Miremos no exemplo dessa mulher, que lançou seu o primeiro CD, ‘Feitiço Caboclo’, quando tinha 73 anos, em 2012.
“No começo desta fase da minha trajetória, eu cantava no Coletivo Rádio Cipó, eu fiz um show no Oi Futuro (2010), foram quatro dias de shows. Cantei também no filme da Camila Pitanga, que ela era protagonista (‘Eu receberia as piores notícias dos teus lindos lábios’, lançado em 2010)”, lembra.
Para quem estiver no Rio de Janeiro, Dona Onete fará um show neste final de semana dentro do evento ‘Mulheres Plurais’, na Praça Mauá, nos dias 26 e 27 de março, ao lado de outra musa da música brasileira, a cantora Alcione.
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