“Nossos territórios são lugares sagrados, são um solo sagrado, onde os nossos ancestrais derramaram o seu sangue para que a gente pudesse ter esse território livre. São territórios de uma diversidade imensa, tem floresta, tem campo, tem áreas ribeirinhas e são espaços de reprodução humana. Nós, quilombolas, temos essa relação de pertencimento com o território porque ele proporciona tudo”.
É assim que Hilário de Moraes, de 51 anos, apresenta o quilombo de Caldeirão, localizada em Salvaterra, onde as heranças culturais das populações negras do Pará ainda enfrentam uma longa luta para serem reconhecidas. embora sejam reconhecidamente os grandes defensores da floresta.
Assim como Caldeirão, outros 16 territórios quilombolas do município do arquipélago do Marajó, onde vivem mais de 7.300 pessoas que não têm a titulação da área tradicionalmente ocupada. Na Amazônia Legal, um total de 583 processos semelhantes estão em andamento, de acordo com a InfoAmazônia. Uma demanda histórica e que se fortalece em momentos emblemáticos como este 20 de novembro, quando é celebrado o Dia da Consciência Negra.
A obtenção do titulo é a etapa final do processo de reconhecimento, que neste caso ainda está no começo. O primeiro passo é a certificação da autodefinição quilombola, dada pela Fundação Cultural Palmares em 2010. Desde então, os processos das comunidades quilombolas marajoaras ainda tramitam sem grandes avanços.
A questão pode parecer uma mera formalidade, porém para quem vive nesses territórios a titulação é sinônimo de garantia de direitos e de proteção da vida e da cultura.
“A titulação do território é como se fosse um diamante que a gente está almejando há muito tempo. É uma das maiores riquezas, um dos maiores sonhos, que é o sonho de ter um território livre, de a gente poder adentrar novamente nos igarapés, acessar os rios, acessar as florestas, acessar as cachoeiras. Isso é uma coisa que está para além do que o homem possa imaginar. Isso mexe com o nosso sentimento”, explica Hilário.
Preservação em comunidades quilombolas
Essa relação dos quilombolas com a natureza ajuda a entender o alto grau de preservação dessas comunidades na Amazônia, região cada vez mais ameaçada pelo desmatamento, a exploração desenfreada e outras formas de degradação.
Um levantamento realizado pela InfoAmazônia cruzou dados das terras quilombolas tituladas ou em processo de titulação na região com os índices oficiais de desmatamento registrado pelo Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e mostrou que esse territórios formam escudos de conservação da floresta.
Segundo a reportagem, as 144 terras quilombolas delimitadas da Amazônia Legal mantiveram 99% de sua área preservada. Os pequenos pontos sem vegetação indicam o uso da terra para manter roçados e outras culturas de subsistência.
Além disso, o estudo mostra que esses territórios ajudam a conter o avanço da devastação ambiental. No estado do Pará, por exemplo, os quilombos ocupam 893 mil hectares e a preservação dessas áreas também é de 99%. Porém, no entorno a taxa de desmatamento acumulada entre 2008 e 2021 foi de 474 mil km².
Entre as comunidades quilombolas mais preservadas está a de Guajará MIri, no município do Acará, onde as 454 pessoas, segundo o censo do IBGE, mantém 100% do território conservado. Outro exemplo com a mesma taxa de preservação é o quilombo de Água Fria, em Oriximiná, no oeste paraense.
Luta e resistência
A realidade da boa convivência das populações com a natureza é semelhante em outras regiões do estado, mesmo sem a garantia da titulação. O problema é que a falta de reconhecimento do poder público torna diversas comunidades vulneráveis às pressões de grupos econômicos e à intervenção de grandes projetos.
“No Marajó, nós estamos vendo a expansão da cultura do arroz irrigado e a construção de portos em Ponta de Pedras para o escoamento de grãos. Nós temos linhões passando em cima de territórios na região guajarina, temos o impacto da Ferrogrão em Moju. Tem ainda o Pedral do Lourenço e a dragagem do rio Tocantins, que é um projeto que vai matar o rio e prejudicar as populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas que dependem desse recurso renovável. Em Santarém, nós temos a expansão da soja, tem a mineração no Alto Trombetas, além da guerra do dendê que tem matado indígenas e quilombolas”, denuncia Hilário de Moraes, que atua na coordenação executiva de articulação da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu).
A entidade foi criada em 2004 e representa mais de 500 comunidades do estado com o objetivo de garantir o reconhecimento dos direitos territoriais das populações quilombolas previstos na Constituição Federal de 1988. O trabalho de articulação política junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) ajudou o estado a assumir a dianteira nacional no número de territórios titulados.
Atualmente, o Pará conta com 87 terras oficialmente delimitadas, onde habitam 44.533 pessoas. Apesar disso, a mobilização continua visando novas conquistas e a garantia dos direitos das populações ainda desamparadas.
“Os entraves são muitos para que a gente possa avançar na defesa dos territórios quilombolas do estado do Pará. É algo que é ao mesmo tempo angustiante e um sonho para que a gente possa conquistar os nossos territórios livres”, afirma o coordenador.
Por Fabrício Queiroz