Parece até que voltamos ao ano de 1500, quando os portugueses chegaram chutando a porta no Brasil, promovendo uma matança geral daqueles povos que viviam aqui havia milênios. É que o pessoal do poder e dinheiro hoje está de olho, mãos e pés nas riquezas naturais dos territórios indígenas. No Pará, o saldo é trágico.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) divulgou na tarde de quarta, 17/08, um relatório amplo sobre a violência contra os povos indígenas em 2021, dividindo por temas: Direitos territoriais; Invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio; Abuso de poder; Ameaças de morte; Ameaças várias; Assassinatos; Homicídio culposo; Tentativa de assassinato; Violências sexuais; Desassistência geral; Desassistência na área de educação; Desassistência na área da saúde; Disseminação de bebida alcoólica e outras drogas e Mortalidade na infância.
Desses temas, o Pará mostrou maior tragédia em “Invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio”. Ficou em segundo lugar, com 42 casos, atrás apenas do Amazonas, com 43. Esse é apenas um dos saldos do avanço do garimpo ilegal, mineração e exploração de madeira em terras paraenses.
Números gerais
As invasões de terras indígenas atingiram o recorde de 305 casos em 2021. Houve uma explosão de invasões sob Bolsonaro: a média foi de 275 casos por ano desde 2019, número 212% maior que a média anual de 88 nos três anos anteriores à atual gestão (2016-2108). O levantamento é realizado desde 2003.
O número de indígenas assassinados no governo Bolsonaro também é o maior já registrado pelo Cimi, com base em dados oficiais do Ministério da Saúde. Foram 113 casos em 2019, 182 em 2020 (o maior já registrado) e 176 em 2021, média anual de 157. O número é 30% maior que a média anual de 121 verificada entre 2016 e 2018.
O número de suicídios de indígenas também foi recorde sob Bolsonaro: 148 casos em 2021.
As invasões atingiram pelo menos 28 terras indígenas onde há presença de povos indígenas isolados – essas áreas concentram 53 do total de 117 registros de povos isolados mantidos pelo Cimi.
O relatório contabiliza 871 casos de omissão e morosidade na regularização de terras indígenas – Bolsonaro não demarcou nenhuma área em seu mandato, como havia ameaçado na campanha eleitoral.
Das 1.393 terras indígenas no Brasil, 871 (62%) seguem com pendências para sua regularização. Destas, 598 são áreas reivindicadas pelos povos indígenas que não contam com nenhuma providência do Estado para dar início ao processo de demarcação.
O Cimi também registrou 847 mortes de indígenas por Covid-19. “O número é mais que o dobro do registrado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que indica a ocorrência de 315 óbitos do tipo no mesmo período”, aponta o relatório.
Pará no relatório por temas:
Direitos territoriais
Em 2021, o Cimi registrou 118 casos de conflitos relativos a direitos territoriais, nos estados do Acre (2), Alagoas (9), Amazonas (4), Bahia (1), Goiás (3), Maranhão (5), Mato Grosso (16), Mato Grosso do Sul (9), Minas Gerais (3), Pará (13), Paraíba (2), Paraná (3), Pernambuco (1), Piauí (1), Rio de Janeiro (1), Rio Grande do Sul (27), Rondônia (4), Roraima (4) e Tocantins (8), além de outros dois casos abrangendo territórios indígenas em vários estados.
A mineração e o garimpo também foram a razão dos graves conflitos ocorridos com o povo Munduruku, no Pará, onde garimpeiros atacaram lideranças e associações indígenas contrárias à devastação do território pela exploração de ouro. Os criminosos chegaram, inclusive, a furar os pneus de um ônibus e tentar impedir lideranças do povo Munduruku de se deslocarem de Jacareacanga (PA) até Brasília, para participarem das mobilizações nacionais em defesa dos direitos indígenas. O motorista foi ameaçado de morte e o povos só conseguiu seguir viagem com escolta policial.
Invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio
Cimi registrou em 2021, 305 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, que afetaram pelo menos 226 terras indígenas em todo o país. Os casos foram registrados em 22 estados: Acre (33), Alagoas (2), Amazonas (43), Bahia (5), Ceará (5), Goiás (1), Maranhão (20), Mato Grosso (24), Mato Grosso do Sul (11), Minas Gerais (8), Pará (42), Paraíba (1), Paraná (6), Pernambuco (2), Piauí (1), Rio Grande Do Norte (2), Rio Grande Do Sul (9), Rondônia (29), Roraima (32), Santa Catarina (7), São Paulo (9) e Tocantins (13).
Entre as 226 terras indígenas afetadas por invasão, pelo menos 58 registram casos de extração ilegal de madeira, areia, castanha e outros recursos naturais; 57 tiveram relatos de presença ilegal de pescadores e caçadores, que muitas vezes atuam de forma predatória; 44 TIs registraram casos de garimpo ou danos causados pela mineração; e pelo menos 33 TIs foram afetadas por grilagem ou loteamento de terras.
A atuação ilegal de garimpeiros também é o principal motivo das invasões e dos diversos conflitos e atos de violência registrados na TI Munduruku, no Pará, na região do alto Tapajós. Sem ações efetivas de fiscalização e combate à ação dos invasores, a terra e seus rios vêm sendo devastados; os criminosos sentem-se à vontade para ameaçar as lideranças que se contrapõem à destruição do território, chegando ao extremo de queimar a casa de uma das lideranças e destruir a sede de uma associação de mulheres, em Jacareacanga.
O garimpo de ouro traz com ele, também, a contaminação das águas e dos indígenas por mercúrio, já identificada, também, entre os Munduruku da região do médio curso do rio Tapajós, no município de Itaituba.
A mineração de metais pesados na região da TI Xikrin do Rio Cateté, também no Pará, segue gerando diversos problemas graves à saúde ao povo. No mesmo estado, algumas das terras indígenas que têm batido recorde de desmatamento nos últimos anos ficam na região do médio Xingu e enfrentam outro tipo de problema recorrente em muitas áreas: a invasão de posseiros e grileiros, que se estabelecem ilegalmente e contam, muitas vezes, com a instalação de verdadeiras redes de infraestrutura, como é o caso da TI Apyterewa, do povo Parakanã. Na TI Ituna/Itatá, de uso restrito devido à presença de isolados, a empresa Equatorial Energia foi multada em R$ 2,51 milhões pelo Ibama, por ter instalado uma rede ilegal de transmissão de energia elétrica dentro do território.
Abuso de poder
Em 2021, foram registrados 33 casos de abuso de poder – mais do que o dobro no ano anterior, quando foram 14 registros do tipo. Na maioria, os abusos permanecem sendo cometidos por agentes públicos que deveriam cumprir a legislação e proteger a população indígena, como servidores das polícias (federal, militar e civil) e da Funai, mas que, ao contrário, sentem-se legitimados a cometer os ilícitos, apoiados e incentivados pelo discurso do presidente da República.
Amazonas (6) e de Roraima (6) foram os estados com mais casos de abuso de poder registrados, seguidos por Distrito Federal (3), Rondônia (3), Ceará (2), Mato Grosso (2), São Paulo (2), Acre (1), Alagoas (1), Maranhão (1), Mato Grosso do Sul (1), Pará (1), Paraná (1), Santa Catarina (1) e Tocantins (1), além de um caso envolvendo vários povos indígenas do Brasil, localizados nos estados da Amazônia Legal.
Em plena pandemia do novo coronavírus, a Funai deu aval para que a mineradora canadense Belo Sun Mining realizasse reuniões presenciais com cerca de uma centena de indígenas em duas aldeias na Amazônia. A empresa, sediada em Toronto, no Canadá, quer acelerar seus planos de explorar uma mina de ouro que pode afetar duas terras indígenas e comunidades de ribeirinhos que já vivem sob o impacto da construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará
Ameaças de morte
Em 2021, foram registrados 19 casos de ameaças de morte, envolvendo diretamente 19 vítimas e duas comunidades inteiras (em Mato Grosso e no Maranhão). No Amazonas foram registrados 4 casos de ameaças de morte (com 6 vítimas); na Bahia, foram 3 casos; no Maranhão, dois dos 5 casos registrados atingiram comunidades inteiras; em Mato Grosso, um caso também foi registrado envolvendo ameaças contra toda uma comunidade; Mato Grosso do Sul e Pará registraram 2 casos cada; em Pernambuco, 1 caso com 4 vítimas; e no Rio de Janeiro, um caso foi registrado.
No Pará, duas lideranças femininas do povo Munduruku, Maria Leusa e Alessandra Korap, têm sofrido constantes ameaças de morte devido a sua firme posição contra a devastação e a invasão do território Munduruku por garimpeiros.
Ameaças várias
Foram registrados 39 casos de ameaças várias no ano de 2021, nos estados do Acre (4), Amazonas (8), Bahia (1), Mato Grosso (3), Mato Grosso do Sul (10), Minas Gerais (1), Pará (1), Paraná (1), Pernambuco (1), Rio Grande do Sul (1), Rondônia (2), Roraima (4) e São Paulo (1), além de um caso de abrangência nacional.
O povo Tembé-Theneteraha denunciou o envolvimento de agentes de segurança pública com milícia privada para fazendeiros que atuam em áreas da TI Alto Rio Guamá, no município de Capitão Poço, no Pará. Os Tembé divulgaram uma nota pública exigindo a presença da Funai, do MPF e da Polícia Federal, e cobraram perícias urgentes e respostas da Justiça sobre o assassinato do jovem Isac Tembé, morto por policiais militares no dia 12 de fevereiro. Na versão dos policiais, eles foram chamados para averiguar um suposto furto de gado em uma fazenda, e disseram que foram surpreendidos por disparos de arma de fogo quando chegaram ao local e que reagiram para se defender. Os indígenas contestam a versão apresentada pelos PMs e indicam que o jovem indígena foi vítima de execução, num local que é frequentado pelos indígenas e reivindicado como parte de seu território tradicional.
Assassinatos
Como em anos anteriores, Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima continuam com os números mais altos de indígenas assassinados. Do total de 176 homicídios indígenas registrados, 29 vítimas eram mulheres, 146 eram homens e o gênero de uma não foi identificado. A maioria dos assassinatos, 118 (67%), vitimou indígenas de 20 a 59 anos. Chama atenção, porém, o grande número de homicídios de indígenas até 19 anos: foram 39, mais de um quinto do total registrado em 2021.
Em 2021, o Cimi registrou 77 assassinatos de indígenas nos estados do Acre (6), Amazonas (6), Bahia (14), Maranhão (1), Mato Grosso (1), Mato Grosso do Sul (17), Minas Gerais (1), Pará (2), Paraná (9), Rio de Janeiro (1), Rio Grande do Sul (7), Rondônia (2), Roraima (7), São Paulo (1) e Tocantins (2).
No Pará, os assassinatos de Isac Tembé e Benedito Tembé, ambos da TI Alto Rio Guamá, também evidenciaram uma grave situação de conflito, com indícios de atuação ilegal da Polícia Militar.
Homicídio culposo
Em 2021, foram registrados 20 casos de homicídio culposo, tendo sido 19 casos de atropelamentos e um caso por carbonização em incêndio acidental. Os casos ocorreram na Bahia (2), Maranhão (1), Mato Grosso (2), Mato Grosso do Sul (3), Paraná (7), Rio Grande do Sul (4) e Roraima (1). Entre as vítimas, duas eram crianças, com 4 e 6 anos, e um ancião, com 84 anos. A falta de assistência às vítimas revela o descaso e o desrespeito com as vidas dos indígenas: em 19 casos, os motoristas fugiram do local sem prestar socorro às pessoas atropeladas.
Tentativa de assassinato
Em 2021, foram registrados 12 casos de tentativa de assassinato de indígenas, envolvendo 14 vítimas. Os casos foram nos estados do Amazonas (2), Bahia (1), Mato Grosso do Sul (8) e Roraima (1).
Violências sexuais
Em 2021, foram registrados 14 casos de violências sexuais contra indígenas. Apesar de baixo, o número é quase três vezes maior do que o do ano anterior, quando foram registrados cinco casos do tipo. Dos 14 casos apresentados neste relatório, três são crianças, de 3 e 5 anos, e sete são adolescentes, de 13 e 14 anos, além de uma anciã com deficiência visual. Os casos correram no Mato Grosso do Sul (6), Roraima (3), Mato Grosso (1), Amapá (1), Paraná (1), Rio de Janeiro (1) e Rio Grande do Sul (1).
Desassistência geral
O Cimi registrou, em 2021, 34 casos de desassistência geral, que ocorreram no Acre (1), Amazonas (1), Bahia (1), Ceará (1), Mato Grosso (2), Mato Grosso do Sul (6), Pará (3), Paraná (4), Rio de Janeiro (1), Rio Grande do Sul (2), Rondônia (2), Roraima (4), Santa Catarina (1), São Paulo (3) e Tocantins (1). Muitos dos relatos de desassistência estão ligados à falta de alimentos e à fome que assola diversas comunidades indígenas.
No Pará, os Tembé da TI Alto Rio Guamá convivem com invasões e até com um depósito de lixo da prefeitura municipal de Garrafão do Norte dentro do território. O lixão irregular tem provocado problemas ambientais e danos à saúde da comunidade indígena. O MPF recomendou à Prefeitura que paralisasse a operação do depósito; como a recomendação não foi atendida, o MPF solicitou à Justiça Federal que o município seja obrigado a elaborar um plano para retirar o lixo da terra indígena.
Lideranças Xikrin denunciam o estado de precariedade em que se encontra a Casa de Apoio, localizada em Parauapebas. A Casa de Apoio é um local de trânsito de indígenas que aguardam transferência para unidades hospitalares, ou que se recuperam de atendimentos de saúde. Cerca de 60 indígenas circulam na casa e denunciam o estado de abandono do imóvel por parte do poder público e também da mineradora Vale que, em acordo firmado com a União, deve auxiliar no complemento à responsabilidade primária do Estado. Os indígenas relatam que, até 2020, a prefeitura de Parauapebas (PA) mantinha uma equipe de enfermagem no local, mas devido à pandemia e às condições da casa, o atendimento foi suspenso. A responsabilidade é da Sesai.
A PGR relatou ao STF que a ausência do Exército na operação de combate ao garimpo ilegal ocorrida na TI Munduruku em maio gerou danos concretos. O Exército apontou falta de recursos e abandonou o local dois dias antes da operação em Jacareacanga (PA), município onde fica localizada a TI.
Desassistência na área de educação
O Cimi registrou, no ano de 2021, 28 casos de desassistência no âmbito da política pública de educação escolar indígena específica e diferenciada. Os dados referem-se aos estados do Acre (4), Alagoas (1), Amazonas (5), Maranhão (3), Mato Grosso (4), Pará (2), Pernambuco (1), Rio Grande do Norte (1), Rio Grande do Sul (1), Rondônia (1), Roraima (1), São Paulo (2) e Tocantins (2).
Muitas comunidades e organizações indígenas denunciam a precariedade na estrutura física das escolas. Em muitas comunidades, não há sequer uma casa ou um barraco que possa ser utilizado como sala de aula; e em muitos dos lugares onde essas infraestruturas existem, elas se encontram deterioradas.
Desassistência na área da saúde
Em 2021, foram registrados pelo Cimi 107 casos de desassistência na área da saúde em quase todos os estados do país. Os casos ocorreram no Acre (6), Amazonas (7), Bahia (1), Espírito Santo (2), Maranhão (1), Mato Grosso (18), Mato Grosso do Sul (15), Minas Gerais (2), Pará (8), Paraíba (2), Paraná (1), Pernambuco (3), Piauí (1), Rio de Janeiro (1), Rio Grande do Norte (2), Rio Grande do Sul (2), Rondônia (9), Roraima (9), Santa Catarina (11), São Paulo (4) e Tocantins (2).
No Pará, os Tembé da TI Alto Rio Guamá tiveram uma série de problemas problemas respiratórios e alergias e outros problemas em função da prática da “chuva de veneno”: a pulverização ilegal de veneno por meio aéreo, realizada por fazendeiros, que afetou também plantações dos indígenas e comunidades de trabalhadores rurais sem terra. A legislação ambiental proíbe a aplicação aérea de agrotóxicos em áreas situadas a uma distância mínima de 500 metros de povoados.
Disseminação de bebida alcoólica e outras drogas
O Cimi registrou em 2021, 13 casos de disseminação de bebida alcoólica e outras drogas, nos estados do Acre (5), Amazonas (2), Mato Grosso do Sul (1), Pará (4) e Roraima (1).
No Pará, lideranças do povo Arara relatam o aumento do consumo de bebida alcóolica na TI Cachoeira Seca, incentivada por não indígenas, inclusive pescadores que atuam ilegalmente no território. A falta de fiscalização contribui para a continuidade dessa prática, que gera consequências desastrosas para o povo.
Mortalidade na infância
Dados oficiais da Sesai, obtidos pelo Cimi através da Lei de Acesso a Informação, indicam um total de 744 mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos. Os estados do Amazonas, Roraima e Mato Grosso apresentam os maiores números de mortes de crianças nessa faixa etária. Pará vem em sexto, com 65 mortes.
Fonte: Cimi e Observatório do Clima