Na Reserva Extrativista Rio Xingu, no Pará, tem tanta fartura e diversidade que dona Marinês Lopes de Souza já vai avisando que se for pra ficar falando tudo o que tem ali, vai o dia inteiro.
Só no quintal, em cinco minutos de olhar atento, tem caju, pato, murici, galinha, manga, peru, andiroba, porco, castanha-do-Pará, temperos.
E a lista vai crescendo sem parar, isso sem falar na roça de macaxeira, nas bananas, nos castanhais e babaçuais que ela tanto preza por ser produtora de farinha do coco babaçu, até chegar no ganso, de nome que homenageia o cantor, compositor e ex-radialista da Rádio Nacional da Amazônia, Edelson Moura.
Essa história está contada desde o dia 14/02 por Roberto Almeida, do Instituto Socioambiental (ISA), no site da instituição, com fotos de Carol Quintanilha e vídeo de Cama Leão.
Criada em 5 de junho de 2008, a Reserva Extrativista Rio Xingu tem uma área de 303 mil hectares — ou duas vezes a área do município de São Paulo. O território é uma faixa estreita na margem esquerda do médio Xingu, escudado por todos os lados por outras áreas protegidas.
Na outra margem do Rio Xingu ficam as Terras Indígenas Araweté e Apyterewa. Às costas e ao norte, a Estação Ecológica da Terra do Meio. Ao sul, o Parque Nacional do Rio Pardo. E dentro de tudo isso, uma imensa sociobiodiversidade pressionada pelo desmatamento, pela grilagem de terras e pelo roubo de madeira.
Hoje, segundo a Associação de Moradores do Médio Xingu (Amomex), 51 famílias ribeirinhas vivem na reserva extrativista. Vivem e geram vida.
Uma olhada no satélite diz tudo: a floresta está em pé em todo o território porque essas pessoas cuidam dela. Os bichos, as plantas, as atividades se repetem e se reproduzem nas casas e comunidades. É uma economia que cuida do presente e do futuro.
Ainda protegidos, os quintais e as roças dos ribeirinhos, como os de Marinês, são exemplo do manejo positivo da biodiversidade amazônica, assim como a coleta da castanha-do-Pará, da seringa e do coco babaçu, que fazem parte de uma ampla lista de produtos da floresta.
Rio Xingu acima, na comunidade Volta da Pedra, Herculano Costa Silva e sua companheira, Diane Ferreira Barbosa, fazem farinha de mandioca com o chão da sala de casa já forrado de bananas, abacates, cará, mandioca, goma de tapioca. Vai tudo para Altamira.
Mais acima ainda, na comunidade Morro Grande, Izautino Curuaia Pereira, o Sinha, logo vai para a roça buscar alimentos, enquanto os vizinhos já deixaram sua parte no paiol. Tem farinha de mandioca, bananas e outras frutas. Vai tudo para Altamira também.
Importância do PAA
A fartura dos ribeirinhos vai para Altamira porque as associações de moradores das reservas extrativistas se organizaram e decidiram acessar um edital do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), na modalidade Compra com Doação Simultânea, lançado em 2020 pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), do governo federal.
O PAA, criado em 2003 no âmbito do Programa Fome Zero, foi rebatizado no final de 2021 como “Programa Alimenta Brasil”, mas manteve suas duas finalidades básicas: promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar. Produtor e consumidor saem ganhando.
Mesmo assim, o PAA vem sendo esvaziado desde 2013 com importantes reduções orçamentárias, o que implica em menos alimentos comprados e distribuídos, e menos incentivo à agricultura familiar. Se em 2011 o governo federal investiu mais de R$ 700 milhões para adquirir alimentos para doação simultânea, em 2020 esse valor caiu para menos da metade: R$ 223 milhões.
O edital acessado pelos ribeirinhos, com valor total de apenas R$ 215 mil, e os resultados colhidos até agora mostram que a política pública funciona, mesmo repleta de obstáculos para comunidades tradicionais.
Produtos como os de Marinês, Herculano, Diane, Sinha e de outras famílias da Reserva Extrativista Rio Xingu resultaram em cestas com o que há de melhor na região para combater a fome durante a crise sanitária da covid-19 na periferia de Altamira — desde castanha-do-Pará até óleo do coco babaçu, passando por frutas, farinhas e tubérculos.
Até agora, mais de 10 toneladas de alimentos produzidos a partir dos saberes das comunidades já foram distribuídos com a ajuda de parceiros. E até o fim de 2022, o número deve chegar a 50 toneladas. Mas a verdade é que poderia ser muito mais.
Comida ‘em boa hora’
Ribeirinhos e indígenas que vivem no mosaico de Terras Indígenas e Reservas Extrativistas na região de Altamira, no Pará, produzem toneladas de alimentos, todos sem agrotóxicos, em suas roças tradicionais. O excedente da produção dessas roças, que mantêm a floresta em pé, poderia chegar com mais frequência à cidade para combater a fome.
“A nossa região é perfeita, não falta nada com relação à terra aqui nesse nosso estado, nessa nossa região, sobretudo aqui no Xingu. O que falta são incentivos, são investimentos que respeitem tudo isso e faça com que as pessoas todas tenham o direito de fato”, observou Maria das Neves Morais de Azevedo, secretária de assistência e promoção social de Altamira.
A secretaria coordenada por Azevedo, parceira dos ribeirinhos, vem recebendo e distribuindo os alimentos de suas roças para os Centros de Referência de Atendimento Social (Cras), portas de entrada das famílias para receber atendimento da prefeitura.
“O que precisa talvez seja mais consciência para que se tenha mais, para que se produza mais, para que se partilhe mais e também para que isso possa chegar com mais frequência à nossa região”, ela continuou.
Efraim Dimas, técnico em informática, deixou a Venezuela em 2018 para tentar a vida no Brasil. Está desempregado e depende da cesta. “Através da assistência social, recebi os produtos rurais. Minha esposa gosta muito. Ela é gestante. Ela está quase pra ganhar bebê. Isso supriu muita coisa em nossa casa”, afirmou.
“Altamira é o maior município brasileiro, 95% da sua área é área rural, mas as pessoas no centro de Altamira passam fome”, afirmou Jackson Dias, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entidade que também recebe e distribui os alimentos das roças ribeirinhas.
O município, com uma população de cerca de 115 mil pessoas, apresenta uma realidade dura. Segundo ele, o movimento tem cerca de 1.500 famílias cadastradas em estado de vulnerabilidade social.
Algumas delas estão no Reassentamento Urbano Coletivo (RUC) Laranjeiras, que recebeu cerca de 2 mil pessoas deslocadas da zona urbana de Altamira pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Ali, Francinete Pinto Novais, também liderança do MAB, é quem bate de porta em porta.