Como se não bastasse a seca extrema que tem castigado os paraenses, nosso estado ainda tem que lidar com o excesso de incênidos florestais. Com 31.119 focos de calor registrados, o Pará lidera o ranking do número de queimadas no Brasil, entre janeiro e outubro de 2023, segundo dados do Instituto Nacional Espaciais (Inpe).
“A Amazônia está neste ano passando por duas coisas que até pouco tempo atrás seriam inimagináveis: populações locais não terem água no lugar que tem a maior bacia hidrográfica do mundo e populações locais não conseguirem respirar por mais que elas estejam na maior floresta tropical do mundo. Não tem água e não tem ar num lugar que teoricamente teria um ar muito puro e uma água muito limpa”.
As palavras são da bióloga carioca Erika Berenguer, 40, que pesquisa fogo na Amazônia na Universidade de Oxford e está em trabalho de campo no Pará desde setembro. Num relato publicado pelo Observatório do Clima, ela conta como está sendo o cotidiano sufocante das populações rurais da região, assoladas pela pior temporada de queimadas em outubro desde 2008 e por uma das piores secas em 120 anos. Berenguer fala ainda sobre como a floresta chegou a esse ponto e dá ideias de como mitigar o problema.
Fogo na área rural
“Só que eu vejo que a imprensa focou muito em Manaus, porque é fácil de chegar, e você olha pra frente tem o rio seco e olha pra cima e tá tudo coberto de fumaça, então você cobre as duas pautas. Só que a fumaça que chega em Manaus e, sim, afeta a maior cidade da Amazônia, não se compara à fumaça que permeia a vida inteira das populações rurais. O fogo não está ocorrendo dentro da cidade, ele ocorre nas áreas rurais. E essas populações acordam, dormem, trabalham, jogam bola, bebem no bar com toda essa fumaça. E isso tem sido a minha realidade”.
“Eu acordo toda noite achando que tem alguém dentro do quarto fumando um cigarro. E sinto um cheiro e acordo exaltada, nervosa, e percebo que o cheiro vem dos meus cabelos. E eu fico sem ar, começa a vir a tosse, o pigarro. A tosse é uma companheira do meu pulmão no último mês. As fungadas, o muco, as dores, a falta de apetite. É o que está todo mundo sentindo. E não estou vendo ninguém olhando para as populações rurais, para o que elas estão passando”.
“Combo da morte’
“O governo está numa situação difícil, porque pegou as agências totalmente desestruturadas num ano de emergência climática. E a gente tem neste ano uma combinação de três coisas que eu chamo de ‘combo da morte’: tem as mudanças climáticas, que em alguns lugares já fazem com que a estação seca seja 2ºC mais quente e chova um terço a menos – tudo isso deixa a floresta mais inflamável. Além disso, temos uma seca extrema ocorrendo, que é o El Niño, e não sabíamos como ele iria interagir com o aquecimento das águas do Atlântico. E tivemos antes três anos de La Niña, o que significou que muita área que foi desmatada nos últimos três anos não deu pra ser queimada. Então este ano muita área que não foi queimada nos últimos três anos está sendo agora. Esse fogo pode escapar para dentro da floresta, gerando incêndios florestais”.
“O governo já sabia disso tudo. A gente já sabe que vai ter um El Niño há seis meses. E a gente tinha os dados do Ipam das áreas derrubadas e não queimadas. Então tinha todos os alertas da ciência. O que eu acho que aconteceu foi que, quando não começou a pegar fogo em agosto, em vez de dirigir recursos para ações preventivas, a galera segurou”.
Solução Possível
“Eu quero apresentar soluções para o fogo, não aguento mais falar que o problema é o fogo e nada acontecer. Uma solução possível seria uma bolsa-defeso, a primeira bolsa-fogo do Brasi”l.
“O fogo na Amazônia está profundamente ligado à segurança alimentar das populações mais vulneráveis. Elas dependem do roçado, da agricultura de corte e queima. A gente não pode proibir essas pessoas de ter a sua farinha, então não dá pra proibir o fogo. Mas daria para dar essa bolsa em anos de seca extrema, e a gente sabe quando eles ocorrerão”.
“Para isso o cálculo é fácil: a gente estima quanto a pessoa iria plantar, faz uma projeção do preço da saca de mandioca e divide por 12 meses. Isso caberia como um fundo totalmente inovador, não faria as pessoas passarem fome e evitaria que esse fogo de roçado se transformasse em incêndio florestal”.
Incêndios no centro das discussões
“A outra coisa é que o desmatamento tem um protagonismo muito grande. O Prodes tem coletiva para lançamento dos dados todo ano. O fogo não tem esse protagonismo. A gente confunde fogo de desatamento com fogo de pastagem com fogo de roçado e com incêndio florestal”.
“É essencial que a gente traga aos incêndios florestais o protagonismo que eles precisam ter”.
“A gente já tem na bacia amazônica, concentrados no Brasil, 120 mil quilômetros quadrados de florestas que já pegaram fogo. São florestas profundamente diferentes das que nunca queimaram. Trinta anos depois de um incêndio a floresta queimada armazena 25% menos carbono do que uma que nunca queimou. É importante trazer para os incêndios um protagonismo”.
‘A floresta amazônica era uma floresta que era úmida demais para queimar. E hoje em dia a gente tem megaincêndios na Amazônia, caracterizados pela queima de áreas maiores que 10 mil hectares. Em 2015 tivemos 1 milhão de hectares queimando só no baixo Tapajós”.
“Para atacar esse problema de frente ele precisa ter nome, protagonismo e uma agenda associada. Então propomos que, do mesmo jeito como anunciamos a taxa de desmatamento, anunciemos também a área de floresta em pé queimada. O Inpe já computa isso, seria apenas uma estratégia de comunicação para trazer protagonismo para um problema tão grande.”