Por Rafael Oliveira/ Agência Pública
Em 28 de fevereiro, uma comitiva recheada de políticos celebrou a chegada do gás natural em Barcarena, município vizinho a Belém, capital do Pará. O cortejo incluía o governador do estado, Helder Barbalho (MDB), o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), e o prefeito da cidade, Renato Ogawa (PP). O trio estava lá para inaugurar o primeiro terminal de importação de gás natural liquefeito (GNL) da região Norte. Para Silveira, o início da operação registrava “uma nova era energética” para a região, com a chegada de uma “energia mais limpa e sustentável para a bacia do rio Amazonas”.
Por “limpa e sustentável”, o ministro, que é um grande defensor da exploração de petróleo na foz do Amazonas, estava se referindo à energia de um combustível fóssil – cuja queima é a principal responsável pelo aquecimento do planeta. Apesar de menos poluente que carvão e petróleo, o gás natural também emite gases de efeito estufa.
O terminal de GNL é o primeiro, mas não o único projeto centrado no gás natural que vai desembarcar na cidade paraense. Uma usina termelétrica (UTE) está em construção e sua primeira etapa deve ficar pronta em julho de 2025, com 630 gigawatts de capacidade instalada (GW). Já há, porém, um pedido de ampliação sendo avaliado pelos órgãos ambientais. Se aprovado, a UTE Novo Tempo poderá chegar posteriormente a uma capacidade instalada de 2,6 GW, se transformando na maior termelétrica da América Latina, com quase 20% da capacidade instalada de Itaipu, a maior produtora de energia do Brasil.
Defendida por políticos e empresários como uma alternativa menos poluente, na comparação com os combustíveis fósseis atualmente usados nas indústrias da região, a chegada do gás natural em Barcarena é vista com preocupação por quem acompanha o tumultuado histórico socioambiental do município. O Complexo Termelétrico Barcarena – como é chamado o projeto – vai ser instalado em um local já abarrotado de impactos hídricos, sociais e de poluição do ar.
“A população já está saturada. Saturada de empreendimentos poluidores, saturada do ponto de vista da ocupação territorial. As pessoas não têm mais espaço para plantação. Há impacto na pesca, nas atividades produtivas dessas comunidades que são essencialmente extrativistas”, aponta o procurador da República Igor Lima, atual responsável pelos processos envolvendo Barcarena junto ao Ministério Público Federal (MPF).
Desde o início deste século, Barcarena já foi palco de pelo menos 29 acidentes ambientais. Água contaminada por transbordamento de barragens de rejeitos e derramamento de óleo, nuvens de fuligem e de fumaça tóxica contaminando o ar e até um naufrágio de navio com 5 mil bois vivos estão entre os episódios enfrentados pelos moradores locais nas últimas décadas. É uma “Chernobyl na Amazônia”, como apelidou uma reportagem do site Amazônia Real, em 2021. Ao longo dos anos, o MPF chegou a assinar alguns Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com as empresas responsáveis, mas ninguém foi efetivamente punido até hoje.
“Todo ano tem novos desastres e todo ano são instalados novos empreendimentos, sem nenhum controle sobre os que já existem. Os desastres são praticamente iguais, a poluição é comprovada e aumenta o tempo todo, e mesmo assim o [governo do] estado chama mais empresas para se instalarem. Barcarena é uma bomba prestes a explodir”, define o professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará (Ufpa) Marcel Theodoor Hazeu, líder do grupo de pesquisa Sociedade, Território e Resistências na Amazônia.
A Agência Pública contatou os órgãos e empresas citados ao longo desta reportagem. Os posicionamentos estão reunidos no final do texto e podem ser lidos na íntegra neste link.
Por que isso importa?
- Cidade vizinha a Belém, que vai receber a cúpula do clima da ONU no ano que vem, a COP30, atrai investimentos no combustível fóssil, cuja queima é uma das responsáveis pelo aquecimento global.
- Construção de usina termelétrica a gás pode piorar os impactos socioambientais em uma região já bastante impactada por dezenas de desastres nas últimas décadas.
Norueguesa é a principal interessada no gás natural
A empresa responsável pela usina é a Centrais Elétricas Barcarena, a Celba, uma subsidiária da multinacional New Fortress Energy (NFE), que tem sede nos Estados Unidos. Além do terminal de GNL e da usina termelétrica, a NFE também é a dona de uma Unidade Flutuante de Armazenamento e Regaseificação (FSRU, na sigla em inglês), estacionada próximo ao porto local, e de gasodutos que vão ser utilizados no transporte do gás em Barcarena.
O objetivo principal dos novos empreendimentos é oferecer uma alternativa mais limpa de combustível a algumas das poluentes indústrias locais, que historicamente usam óleo diesel e coque de petróleo.
A maior interessada na “nova era energética” é a multinacional norueguesa Norsk Hydro, que tem em Barcarena dois de seus principais ativos: a Alunorte, maior produtora de alumina do mundo fora da China; e a Albras, que utiliza o produto fornecido pela Alunorte para fabricar alumínio e é a maior consumidora livre de energia do Brasil (ou seja, eles negociam a compra de energia diretamente com os produtores, fora do sistema convencional). A Hydro é dona também da Mineração Paragominas, na cidade homônima, que extrai parte da bauxita utilizada para a produção da alumina.
Os primeiros contratos de fornecimento de gás natural da NFE foram assinados justamente com a Alunorte. A mudança de matriz energética vem para ajudar a multinacional norueguesa a vender seus produtos com um selo de sustentabilidade em mercados cada vez mais exigentes, em especial na Europa.
Com Helder Barbalho se preparando para ser o anfitrião da Conferência do Clima da ONU de 2025, em Belém, a ascensão dos projetos de gás natural no Pará vem sendo celebrada pelo governo estadual como “um momento histórico”.
Segundo o próprio Barbalho, o objetivo é que em um segundo momento o combustível seja utilizado por veículos (gás natural veicular, o GNV) e abasteça comércios e residências do estado. A incoerência de investir em combustíveis fósseis, em vez de reduzi-los – movimento imprescindível para conter o aquecimento global, principal objetivo da COP30 –, não tem sido abordada pelo governo local.
A participação estadual acontece também por meio da Gás do Pará, uma concessionária público-privada que tem exclusividade na distribuição do gás natural no estado. A empresa, que vai transportar o gás natural da NFE para a Hydro Alunorte, é atualmente presidida pelo ex-senador Flexa Ribeiro (MDB). Além de 51% das ações nas mãos do governo estadual, a companhia possui participação acionária (49%) da Termogás, do empresário Carlos Suarez, conhecido como “rei do gás”.
Suarez é um dos principais responsáveis pelo avanço do lobby do setor, que vem emplacando jabutis – trechos sem relação com o tema original – em projetos de lei e desenvolvendo projetos de termelétricas em várias partes do país. A despeito de não ser sustentável, o combustível fóssil vem sendo alardeado como parte fundamental da transição energética – o que atrasa o avanço efetivo da mudança da matriz energética, segundo estudo da Coalizão Energia Limpa.
Esse crescimento do gás e também do petróleo se dá inclusive na região amazônica, com a tentativa de exploração da margem equatorial e o início da produção do campo de Azulão, na bacia do rio Amazonas.
Vários desses projetos ligados a combustíveis fósseis contam com apoio federal. A New Fortress Energy, por exemplo, está construindo a usina termelétrica em Barcarena com um empréstimo de R$ 1,8 bilhão do BNDES, parte do Novo PAC, além de ter o terreno destinado à instalação do empreendimento cedido pela Companhia das Docas.
Uso de recursos hídricos pela UTE preocupa
As usinas termelétricas a gás natural, além de ofertarem uma energia mais cara para o consumidor, de serem mais prejudiciais ao meio ambiente e contribuírem mais para as mudanças climáticas do que fontes renováveis, como a eólica e solar, demandam grande quantidade de recursos hídricos para o resfriamento das turbinas que geram energia. A UTE Novo Tempo não é exceção: no estudo ambiental apresentado, a empresa afirma que vai utilizar 26,2 bilhões de litros de água por ano (ou 72 milhões de litros por dia), o equivalente ao consumo de 473 mil pessoas, quase quatro vezes a população de Barcarena.
Mas o montante pode ser ainda maior, já que a Celba é uma das empresas do país que mais pode captar água em rios federais, como revelou investigação da Pública em 2023. A empresa tem autorização para captar um total de 160,4 bilhões de litros de água por ano (439 milhões por dia) no rio Pará, distribuídos em três outorgas. É o equivalente ao consumo de cerca de 2,9 milhões de pessoas, 22 vezes a população de Barcarena e mais de duas vezes a população da vizinha Belém. Não há cobrança pelo uso da água na região, então o empreendimento termelétrico não pagará nenhum centavo pelo consumo bilionário de recursos hídricos.
Mesmo antes da conclusão da termelétrica, o município já convive com estresse hídrico. Além de outorgas vultosas para as indústrias instaladas no município – a Albras sozinha tem autorização estadual para captar 203 bilhões de litros por ano (556 milhões por dia) –, são frequentes as denúncias de contaminação da água.
Em decorrência dessa contaminação, a despeito de estar cercada por rios e igarapés, parte da população do município depende do fornecimento de água mineral em garrafas ou em caminhões-pipa.
“Os rios estão impróprios para consumo, tanto para pescado quanto para banho. O impacto pelo ar também é muito grande. As pessoas não querem comprar nossas hortaliças quando sabem que é da comunidade por conta da contaminação”, relata Euniceia Fernandes Rodrigues, professora e líder comunitária de Barcarena que mora desde que nasceu na Vila do Conde, região mais diretamente afetada pelas indústrias.
A contaminação dos corpos hídricos foi constatada em diversas ocasiões por pesquisadores de instituições como o Instituto Evandro Chagas (IEC) e o Laboratório de Química Analítica e Ambiental (Laquanam) da Ufpa. O próprio estudo ambiental apresentado pela Celba detectou o problema. Análises de fios de cabelo de moradores locais também revelaram contaminação por dezenas de elementos cancerígenos.
Não há, até o momento, estudos que mostrem uma correlação direta entre o contato com as substâncias tóxicas advindas das indústrias locais e um aumento de problemas de saúde na população de Barcarena. Mas, entre as fontes ouvidas pela Pública e por outros veículos de comunicação que abordaram o histórico do município paraense, se amontoam os relatos de um número anormal de cânceres, doenças de pele e nascimento de crianças com comorbidades.
A chegada de um empreendimento altamente impactante em um cenário como esse preocupa especialistas e moradores da região, que acusam o poder público de leniência frente ao poder econômico das grandes corporações.
“A implementação de um novo projeto de indústria é sempre muito preocupante, principalmente pela negligência dos órgãos de fiscalização e da própria indústria. O empreendimento, quando vai para um ambiente desse, não está pensando em não poluir, está pensando no que vai produzir”, aponta Bruno Carneiro, pesquisador do Instituto Evandro Chagas. “A perspectiva que a gente tem de Barcarena é sempre de expansão. Eles não estão colocando essa indústria de gás natural pensando em manter a capacidade produtiva, e sim em ampliar a produção”, diz.
Segundo Euniceia Rodrigues, “ninguém vive sossegado” em Barcarena, já que a cada ano há um novo projeto que ameaça o modo de viver da população local. Ela também reclama da falta de transparência ao longo dos processos de licenciamento ambiental, inclusive o da usina termelétrica.
“Aqui na nossa comunidade, a gente foi convidado para algumas reuniões [sobre o projeto]. Só que eles explicam de uma maneira tão técnica que a gente acaba não entendendo muito bem”, afirma.
População aumentou mais de 500% em 40 anos
Antes habitada majoritariamente por ribeirinhos, quilombolas, comunidades tradicionais e pequenos fazendeiros, Barcarena começou a ter sua paisagem alterada durante a ditadura civil-militar. No fim dos anos 1970, teve início o planejamento de um polo produtor e exportador de alumina e alumínio por meio de um acordo bilateral entre os governos brasileiro e japonês. Por trás do projeto estavam a então estatal Vale do Rio Doce e a Nippon Amazon Aluminium Company (Naac), um consórcio entre empresas do país asiático e o governo local.
De lá para cá, a população do município cresceu mais de 500%, passando de 20 mil pessoas em 1980 para mais de 126 mil em 2022. O aumento populacional acompanhou a expansão acelerada de novas indústrias, que tomaram a maior parte das áreas próximas aos leitos dos rios, levando à expulsão de comunidades de seus territórios tradicionais – ora por meio de acordos pouco favoráveis aos moradores, ora por ameaças diretas.
Passadas mais de quatro décadas desde sua semente inicial, o distrito industrial de Barcarena tem hoje quase uma centena de empresas, muitas delas ligadas à cadeia de produção da alumina e do alumínio, mas também do agronegócio e de outros ramos da mineração.
Além da dupla Albras/Alunorte, que desde o início da década passou a ser controlada pela Norsk Hydro, outra empresa que se destaca no município – tanto pela relevância econômica quanto pelos acidentes ambientais – é a antiga Imerys Capim Caulim.
Multinacional francesa, a Imerys comprou as ações da Pará Pigmentos, então controlada pela Vale, em 2010. Em julho de 2024, a operação da Imerys em Barcarena foi comprada pelo Grupo Flacks. Renomeada como Artemyn, a empresa detém em Barcarena a maior planta do mundo de beneficiamento de caulim, uma argila branca utilizada em segmentos que vão de papel e tintas até cerâmicas e cosméticos.
Com uma recorrência quase anual de acidentes ambientais no município, pesquisadores e moradores de comunidades tradicionais demandam que seja feito um licenciamento ambiental conjunto para todo o distrito industrial, de modo a levar em conta os impactos sociais e ambientais múltiplos das diversas empresas instaladas e o risco potencial de eles se somarem e se retroalimentarem.
A despeito de não fazer parte da delimitação oficial do distrito industrial, a usina termelétrica que está sendo instalada em Barcarena é colada ao polo, de modo que seus eventuais impactos se somariam aos já existentes na região.
“Cada empreendimento faz o licenciamento ambiental como se estivesse sendo instalado em Marte, como se não tivesse nada ao redor, e não é assim. A gente tem [em Barcarena] uma zona que é ecologicamente muito sensível. Quando a licença ambiental de cada empreendimento é considerada singularmente, não se tem um olhar estrutural sobre os impactos sinergéticos dos vários empreendimentos, que se combinam”, diz Igor Lima, do MPF.
Em 2016, o governo do Pará e a Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará (Codec), responsável pela área, chegaram a firmar um termo de compromisso com o MPF e com o Ministério Público do Pará (MPPA), se comprometendo a realizar o licenciamento conjunto do polo industrial em 18 meses. A recomendação do MPF é que nenhum novo empreendimento seja instalado no distrito até a finalização do licenciamento conjunto.
Passados oito anos do termo, a análise não foi feita e o complexo termelétrico está sendo instalado ao lado do distrito, o que vai garantir energia elétrica de sobra para novas indústrias sem que haja um cuidado específico para evitar novos impactos socioambientais em Barcarena.
Outros lados
A íntegra dos posicionamentos pode ser lida neste link.
A New Fortress Energy afirmou atuar “de acordo com as normas federais que orientam sobre a redução do estresse hídrico em seus projetos” e disse que monitora e devolve a água utilizada ao sistema hídrico e não utiliza elementos químicos na água. Por meio de nota, a empresa afirmou que segue “padrões rígidos” de saúde, segurança e meio ambiente, disse que o GNL é seguro e que os projetos de gás natural “representam um marco na redução da emissão de gases de efeito estufa em toda a Região Norte”. Em relação ao licenciamento ambiental, a empresa afirma ter seguido “rigorosamente os ritos obrigatórios junto aos órgãos intervenientes”.
Em nota, a Norsk Hydro destacou que “terá, somente na Alunorte, uma redução das emissões na ordem de 1,4 milhão de toneladas de CO2 por ano a partir de 2025” com o uso do gás natural e que, além de estar substituindo sua matriz energética para o combustível, fruto de acordo pactuado com o governo do Pará, está instalando caldeiras elétricas movidas a energia renovável. A empresa afirmou que “nega veementemente alegações de poluição na região de Barcarena” e que “as atividades da empresa são devidamente licenciadas e as operações são monitoradas e auditadas pelas autoridades competentes”.
A prefeitura de Barcarena afirmou que tem trabalhado para “para monitorar e fiscalizar as atividades industriais na região”, incluindo o “fortalecimento da fiscalização ambiental local e a implementação de ações de educação ambiental junto à população”. Em relação ao licenciamento ambiental do distrito industrial, destacou que a competência é do governo estadual, mas disse que “tem atuado em colaboração com órgãos ambientais para monitorar os impactos e garantir que as operações industriais estejam em conformidade com as normas ambientais vigentes”.
Em relação à questão hídrica, o governo municipal afirmou estar implementando um programa que vai garantir “água potável para 99% da população e tratamento de esgoto para 90% do território até 2025”, com um investimento de R$ 150 milhões. Por meio de nota, afirmou ainda que, “embora não tenha competência direta sobre o licenciamento ambiental de grandes empreendimentos, [a prefeitura] desempenha um papel fundamental na mediação entre a comunidade local, os órgãos estaduais e as empresas envolvidas”.
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará afirmou em nota que “acompanha rigorosamente o cumprimento de todas as condicionantes estabelecidas no licenciamento ambiental dos empreendimentos” e que o processo de licenciamento do distrito Industrial está em andamento. A Pública questionou em qual fase está o licenciamento e qual o número do processo, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
O órgão ressaltou que a usina termelétrica não está localizada na área do distrito industrial, que o licenciamento “obedeceu a todos os critérios legais” e que a “avaliação da disponibilidade hídrica da bacia em relação aos usos do empreendimento é de competência do órgão federal”.
Já a Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará (Codec) reforçou que a termelétrica não está na sua área de responsabilidade e afirmou que o termo de compromisso não impede a instalação de novos empreendimentos. Segundo a Codec, um termo de referência para a realização do licenciamento conjunto está sendo elaborado.
O governo do Pará (contatado via Secretaria de Comunicação) não se pronunciou até a publicação.