Por Fabrício Queiroz
“A gente está enfrentando estiagens severas no Alto Trombetas há vários anos. A diferença é que a cada ano os problemas vão ficando mais sérios e a seca mais severa”. O relato é de Ângela Kaxuyana, que vive na Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, localizada nos municípios de Faro e Oriximiná, no oeste do Pará; e de Nhamundá (AM), que estão entre as áreas mais afetadas pelos efeitos da seca e da estiagem desde o ano passado.
Diante da situação crítica e que tende a se repetir com grande intensidade neste ano, até outubro, o Ministério Público Federal (MPF) organizou nesta quarta-feira, 21, em Santarém, uma escuta pública de órgãos dos governos federal, estadual e municipais e organizações da sociedade civil sobre as estratégias de prevenção, planejamento e enfrentamento, redução de impactos e adaptação adotadas na região do Baixo Amazonas.
Durante a sessão, representantes dos povos tradicionais detalharam os problemas enfrentados principalmente nas áreas de saúde, transporte, produção agrícola, segurança alimentar e ajuda humanitária. Uma das queixas apresentadas é em relação à qualidade dos alimentos distribuídos nas cestas básicas, que já chegam às comunidades vencidos ou próximos da validade, além da demora na entrega prejudicada pela falta de navegabilidade nos rios e igarapés.
“A gente precisa que se avance em planos de enfrentamento conjunto. Em primeiro lugar do ponto de vista da saúde porque as crianças de 0 a 5 anos das aldeias são as primeiras afetadas pela seca. Elas acabam consumindo água não tratada e isso traz um quadro de doenças e desnutrição associada a isso. Outro ponto é a segurança alimentar porque não tem como estocar alimentos perecíveis. Além disso, precisamos garantir a desintrusão dos nossos territórios porque as invasões não reduzem durante a estiagem. Os recursos já são escassos e o invasor está lá pressionando e diminuindo a oferta de alimento e caça para os indígenas”, destacou Ângela.
As comunidades locais têm sido protagonistas do processo de busca por soluções antes da situação se agravar ainda mais, afirmou Josielson Santos da Costa, coordenador da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO). De acordo com a liderança, isso se deve pelo fato de que são as populações tradicionais que melhor conhecem a realidade da região e, por isso, se mobilizam na busca de respostas do poder público.
“O município de Oriximiná não está preparado para essa seca. O nível do Rio Trombetas vem caindo desde junho e seguindo nesse ritmo vai chegar em setembro já na cota de alerta. Por isso, já enviamos ofício para a Defesa Civil e estamos fazendo uma articulação local para que se tenha soluções”, pontuou Josielson Costa.
Cenário crítico em setembro e outubro
A preocupação dos povos e comunidades tradicionais tem motivo, já que o monitoramento das condições climáticas, de temperatura, chuvas e vazão dos rios aponta para um cenário tão grave quanto em 2023. As análises do Centro Nacional de Monitoramento de Alertas e Desastres Naturais (Cemaden) que combinam dados sobre a vazão dos rios indicam que pelo menos os próximos dois meses serão de estiagem.
“A previsão mostra que o nível está bem abaixo da média climatológica, o que corrobora a ideia de que assim como tivemos um ano passado de escassez, neste ano, nos meses de setembro e outubro, principalmente, ainda estará abaixo da média”, analisou a coordenadora do Cemaden, Regina Alvalá.
A expectativa é que a situação melhore caso se estabeleça o fenômeno La Niña, que costuma ocorrer após o El Niño e tem efeitos diretos sobre o aumento do volume de chuvas. Essa mudança, no entanto, só é esperada a partir de novembro.
“Viemos de dois anos de períodos secos na região e a projeção é que a estação seca pode ser bastante crítica na região Norte do Brasil”, reforçou a pesquisadora.
Por outro lado, o coordenador substituto de ciências da terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Luiz Aragão, tem uma visão mais pessimista quanto ao impacto positivo que um eventual La Niña pode ter. Isso porque outros fatores, como o aquecimento contínuo da temperatura do planeta e das águas do Atlântico Norte, contribuem para o prolongamento da estação seca.
“O planeta Terra está cada ano mais quente e muita dessa temperatura do continente também é refletida na superfície do mar, onde nós temos o Atlântico Tropical Norte aquecido também. Isso gera seca e, mesmo com a transição para o La Niña, permanece esse aquecimento em forma de anomalia. Há uma elevada probabilidade de termos chuvas abaixo da média em grande parte do Pará e a seca continuar pelo menos durante os meses de setembro e outubro”, alertou Luiz Aragão.