Por Gisele Coutinho
A destruição dos ecossistemas naturais, seja em forma de desmatamento ou de eventos climáticos extremos, como as enchentes precoces do Rio Tocantins, desloca vetores de doenças para todos os lados, bem como populações afetadas pelos fenômenos. Em conversa com o Pará Terra Boa nesta terça-feira, 25/01, o médico patologista Paulo Saldiva alertou para mudanças da geografia das doenças infecciosas, aceleradas pela forma predatória do uso do solo.
“A fragmentação dos ecossistemas empurra os vetores e os reservatórios para longe. Em 2019, tivemos surto de febre amarela em São Paulo, por exemplo. Vivemos isso com ebola na África com os morcegos em busca de floresta em áreas desmatadas. A geografia das moléstias transmitidas por mosquitos está mudando. A dengue está mudando. A cartografia no Brasil está se expandindo, malária também está aumentando. A mudança do ecossistema pelo uso de ocupação do solo causa impacto em doenças infecciosas”, afirmou.
É o caso, por exemplo, da dengue, zika, chikungunya, febre amarela, diarreias e hepatite A, que dão sinais de vida logo no início das enchentes.
“Muitas pessoas entram nas águas para resgatar objetos, animais ou pessoas, e aí tem um grande surto de contaminação por conta de águas de descarte de fossas, de esgotamento sanitário, o que aumenta a chance de ter hepatites, leptospirose entre outras doenças”, alertou.
Segundo ele, “assim que a água começa a baixar e com o calor, os mosquitos começam a se proliferar, as doenças começam a se alastrar. É preciso um acompanhamento contínuo para entender o impacto real que essas famílias terão em relação a doenças para ajudar a tomar decisões de saúde pública”.
O médico faz uma comparação entre o Pará e São Paulo, onde o pico de doenças se apresenta na semana seguinte à inundação, sendo que o surgimento de leptospirose e hepatite surgem na terceira semana.
“E em São Paulo é menos intenso ao que aconteceu no Pará e na Bahia”, lembra Saldiva.
Entre janeiro e início de dezembro de 2021, os casos prováveis de chikungunya no Brasil somaram 93.403. O número representa um aumento de 31,3% sobre o mesmo período de 2020. Os casos de dengue totalizaram 508,2 mil no período, segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde sobre os casos de arboviroses urbanas transmitidas pelo Aedes aegypti, divulgado em dezembro.
Em um segundo momento, quando o nível da água começa a cair e famílias retornam a suas casas atingidas pela água, muitas vezes destruídas, a situação se agrava.
“Quando você tem essa chuva, a água que fica empoçada, o transbordamento, o lixo sólido, o acúmulo de lixo é o caminho natural para acúmulo de mosquito, fecundação de ovos, já que você coloca terra e areia em vasos, mas não tem como colocar em lixo. Nesse período é que bomba no Brasil a dengue, zika, chikungunya”.
Coletas de amostras das águas das enchentes dos rios Tocantins e Araguaia foram feitas em um raio de 400 metros quadrados, a partir da orla Sebastião Miranda, em Marabá, para alcançar um maior número de pontos dos bairros Francisco Coelho e Santa Rosa. O trabalho é coordenado pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).
As amostras das águas serão avaliadas pelo Laboratório de Solo, Água e Planta, da Faculdade de Agronomia da Unifesspa. Serão observadas concentrações de colônias de coliformes fecais e totais. O resultado deve ficar pronto em 15 dias, e o alerta é para a não utilização das áreas alagadiças como ambiente recreativo, o que não foi visto em Marabá. As redes sociais têm vários vídeos de pessoas em celebração no meio da inundação na orla da cidade.
Cerrado
No bioma vizinho, o Cerrado, há comprovação científica de que a destruição do ecossistema está ligada diretamente ao aumento do número de casos de dengue na região.
De acordo com estudo de cientistas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), publicado na revista científica “PLOS”, se o ritmo do desmatamento continuar semelhante ao atual, em 2030 toda a área do Cerrado terá um aumento considerável dos casos da doença.
Em 2020, houve em todo o mundo 2,7 milhões de casos de dengue. Desse total, 36,5% foram no Brasil. Mais da metade deles foi registrada no Cerrado. De 2008 a 2019, a dengue matou 6,4 mil pessoas em território brasileiro.
O avanço do Aedes aegypti em áreas tropicais é relacionado à urbanização, sobretudo em cidades sem infraestrutura de saneamento básico. A perda do habitat e a redução de predadores naturais “empurram” o inseto para áreas urbanizadas, espalhando a dengue.
Além das doenças infecciosas
Saldiva lembra que, no início das tragédias, o que salta aos olhos é o aspecto psicológico daqueles que perderam tudo ou quase tudo.
“Mas a coisa vai além. O primeiro [impacto] é o psicológico, o sentimento de insegurança, perda de bens materiais, afetivos, lembranças, fotografias e objetos. Por isso, redes de apoio que se formam são importantes para que as pessoas possam vencer o medo com esperança e solidariedade”.
O médico patologista alerta ainda para o impacto da nova realidade nessas comunidades atingidas pelas inundações, que muitas vezes passam a viver em outras regiões, sem sua plantação e animais, adquirindo hábitos estranhos à realidade anterior, como o uso de bebidas alcoólicas. É o que ele chama de “doenças de deslocamento”.
“Em um espaço um pouco mais longo, temos o impacto das doenças de deslocamento. Pessoas que produziam, comunidades que criaram animais, alimentos, com uma forma de vida, são obrigadas a se mudar para conjuntos habitacionais, para receber cesta básica e alimentos processados. Temos que ter um papel na sociedade, uma identificação. Essas doenças causadas pelo descolamento são ligadas à perda do papel social que essa pessoa tinha. Temos observado um grande aumento de obesidade e alcoolismo nesses casos, o que faz parte da doença da perda”, explica.
Famílias atingidas pelas enchentes do Rio Tocantins, em Marabá, tem recebido serviços de saúde do Governo do Pará por meio de duas carretas do projeto “TerPaz, Formação Profissional”, adaptadas para realizar atendimentos médicos, testes para detecção da covid-19, emissão de documentos, entre outros serviços.
Os atingidos também têm recebido colchões, kits de higiene e limpeza, cestas de alimentos, além de atendimento nas especialidades Clínica Médica, Pediatria e Ginecologia, vacinas (contra covid-19 e a tríplice viral) e exames de sífilis, hepatite B e C e HIV.
“É preciso uma política para reduzir danos, o que depende da estrutura dos municípios e combate a desvios de recursos. Mecanismos com entidades, associações, envolvimento da comunidade são o segredo para distribuir cestas básicas, captar fundos da iniciativa privada e monitorar verbas do governo. Eu acredito que o melhor para reduzir danos, além de medidas preventivas, é o conhecimento em microescala, de saber onde mora o indivíduo e qual a necessidade dessa pessoa, dessa família”, conclui Saldiva.
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