Por Camila Ribas, para Sumaúma
Já que estamos na semana da COP da Biodiversidade da ONU, o Pará Terra Boa vai trazer conteúdos produzidos por publicações respeitadas sobre o assunto. O evento ocorre até o dia 19 de dezembro, em Montreal, no Canadá. A seguir, o site Sumaúma apresenta a terceira parte da série ‘Natureza no Planalto’, em que pesquisadores escrevem textos, com função de alerta, ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva:
Meu nome é Camila Ribas, sou pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e estudo a biogeografia das aves amazônicas. Represento aqui a Psophia obscura, ou jacamim-de-costas-escuras, como é popularmente conhecida essa ave que vive em apenas uma região da Amazônia, entre o Pará e o Maranhão.
Sua casa fica justamente no arco do desmatamento, o local mais afetado pela destruição da floresta. Em pouco tempo, presidente Lula, ela já não terá mais ambiente para viver. Peço, em nome dela, que a derrubada das árvores e as queimadas parem imediatamente nesta região. Não se pode destruir nem mais um centímetro de floresta, ou essas aves serão extintas.
Os jacamins são um gênero de aves grandes, que andam no chão. É um bicho muito característico da Amazônia, porque só existe aqui. Cada espécie de jacamim ocorre em uma área de endemismo, como chamamos uma região geográfica que possui espécies que só existem naquele espaço e em nenhum outro lugar do mundo.
Eles vivem em áreas recortadas por rios, e em cada região de terra firme entre os rios (interflúvios) vive uma espécie diferente de jacamim. É uma ave que só habita a floresta fechada, não vai para a várzea. Por isso não existem 2 espécies de jacamim no mesmo interflúvio, cada uma tem sua própria região. É como se fossem cidades cujos limites são os rios. Cada espécie de jacamim vive em uma cidade e apenas nela. Essa é a área endêmica daquela espécie.
O jacamim-de-costas-escuras vive no chamado Centro de Endemismo de Belém, o mais prejudicado pela destruição da floresta. Um estudo recente apontou que 76% da área já foi desmatada. Essa ave depende muito da boa saúde da floresta.
Quando a mata é derrubada e a floresta é convertida em um campo muito aberto, essas pessoas não humanas se tornam presas fáceis, incapazes de se proteger dos predadores. Além disso, sofrem por falta de comida, porque se alimentam dos frutos que caem das árvores maiores. Precisam de territórios grandes para procurar comida nas diferentes estações do ano.
Se a floresta está muito fragmentada, toda recortada pelo desmatamento, não saem de dentro do fragmento porque não podem andar no campo aberto. Ficam então confinadas, sem acesso ao alimento. Fazem ninho em oco de árvores e, como são grandes, precisam de árvores grandes disponíveis. Quando tudo isso falta, o jacamim também começa a faltar.
Muita gente, quando pensa na Amazônia, imagina a floresta como uma grande bola verde. Há esse discurso de que a Amazônia é muito grande, de que 80% dela está conservada e por isso supostamente a gente estaria cuidando bem, como afirmam esses terríveis ministros do Meio Ambiente do governo Bolsonaro.
Mas os jacamins mostram que isso não é verdade, que essas diferentes partes da Amazônia estão evoluindo de maneiras distintas e independentes. Os 20% destruídos estão concentrados em áreas onde existem espécies únicas que podem ser perdidas para sempre. A Psophia obscura é um bicho grande, que a gente conhece relativamente bem, mas ela representa vários outros seres que podem também ser únicos daquela área e estão sendo destruídos com ela, só que não somos capazes nem mesmo de enxergá-los.
Presidente Lula, é preciso parar já o desmatamento nessa região do Centro de Endemismo de Belém. Não se pode desmatar nem mais um centímetro, porque quase não há mais floresta. A Psophia obscura é muito sensível e já está numa condição de extrema ameaça; ela precisa que os ambientes que restam sejam mantidos e que sejam criados corredores entre eles. O jacamim-de-costas-escuras precisa não só de desmatamento zero, mas também de restauração, para que a floresta retorne e seja, mais uma vez, uma casa boa para viver.
Fonte: Sumaúma