Uma pesquisa inédita realizada pela InfoAmazonia revelou que de 144 terras quilombolas, entre tituladas e em processo de titulação, localizadas na Amazônia Legal, 99% não sofreram grandes alterações nos registros de desmatamento nos últimos 13 anos.
Isso significa que a presença das comunidades quilombolas na Amazônia desempenha um papel fundamental na proteção da floresta, atuando como verdadeiros escudos que impedem o avanço do desmatamento e a entrada de invasores.
Com acesso a dados geográficos de 144 territórios do universo de 731, que são reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o levantamento realizou uma análise cruzada entre as localizações das terras quilombolas e os registros de desmatamento fornecidos pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), no período de 2008 a 2021.
O estado do Pará é o que possui o maior número de terras quilombolas na Amazônia Legal, com 86 títulos já concedidos. Essas comunidades ocupam uma área de aproximadamente 893 mil hectares e estão cercadas por pressões de devastação ambiental. Estima-se que haja um desmatamento de cerca de 474 mil km² em uma faixa de 10 km ao redor dos territórios quilombolas paraenses.
Dois dos territórios mais preservados do Pará são o Quilombo Guajará Miri, no município de Acará, que foi titulado em 2002, e o Quilombo de Água Fria, em Oriximiná, titulado em 1996. Desde a titulação, eles mantêm 100% da floresta preservada dentro de suas áreas.
Foi no nosso Pará que ocorreu o reconhecimento do primeiro território quilombola do Brasil, em 1995. O Quilombo de Boa Vista, em Oriximiná, é considerado um marco inicial nesse processo.
Como publicamos recentemente aqui no Pará Terra Boa, essa região é um paraíso da bioeconomia e está ameaçada por uma licença para uma madeireira. Um acordo celebrado no começo deste ano entre uma associação regional e uma companhia madeireira desrespeita as tradições dos quilombolas das comunidades de Oriximiná e ameaça o modelo de desenvolvimento sustentável.
As comunidades remanescentes de quilombos da região, situadas em um dos maiores blocos de floresta tropical protegida do mundo, são consideradas um exemplo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. Seu modelo de bioeconomia, que se baseia em produtos não madeireiros, valoriza a floresta em pé.
Agricultura em pequena escala
De acordo com Luís Maurano, tecnologista sênior responsável pelos monitoramentos de desmatamento no Inpe, os registros de desmatamento encontrados em territórios quilombolas indicam que a terra está sendo utilizada principalmente para atividades agrícolas de pequena escala, como pequenos roçados.
“Ele [o quilombola] não é um grande produtor rural que vai usar aquela área para cultivar soja ou vai abrir grandes pastagens para criar boi. Os moradores dos territórios não têm grande capacidade de investimento, eles abrem pequenos roçados, muitos localizados, para plantar mandioca, pimenta, para subsistência. Você pode observar que esses registros são muito pequenos, de menos de um quilômetro na maioria das vezes”, explicou.
Invisibilização
A presença negra na Amazônia foi, muitas vezes, questionada e esquecida. Sendo a Amazônia um território majoritariamente marcado pela presença indígena, pesquisadores afirmam que a história do povo negro na Amazônia foi afetada.
“Essa percepção de um espaço de cultura marcadamente indígena, fez com que a escravidão e a cultura africanas se deslocassem a um plano menor, constituindo um vazio na historiografia regional, o que fica mais evidente ao se buscar estudos sobre as comunidades negras, quilombolas ou não, que se constituíram ao longo da história”, explica o historiador Eurípides Funes, na introdução do livro “O fim do silêncio – presença negra na Amazônia”.
Por conta disso, diversos quilombolas passam anos sem compreender suas origens. Esse foi o caso de José Carlos Guerreiro Galiza, do município de Acará, que entendeu o significado da palavra “quilombo” pela primeira vez aos 47 anos. Desde sua infância, Galiza trabalhou no campo ao lado de sua família e entre 1995 e 2000 foi forçado a trabalhar para fazendeiros que invadiram seu território, alegando serem os proprietários das terras.
Em 2000, ao participar do I Encontro de Comunidades Negras Rurais, promovido pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), ele compreendeu o que significava ser parte de uma população remanescente e reconheceu a si mesmo como um quilombola. Atualmente, José atua como representante da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) no Pará.
“Foi ali que eu descobri o que era quilombo e que já existia alguns direitos constitucionais. Também descobri que já existiam terras tituladas aqui no Pará. Na época, eu lutava por direito à moradia, mas pelo loteamento. Com o evento, eu percebi que todas aquelas famílias da minha comunidade eram negras, com trabalhos rurais tradicionais, só não se chamavam quilombolas. Foi quando nossa luta mudou”, relatou.