Por Gisele Coutinho
Feche os olhos e imagine um laboratório de última tecnologia, feito em lona com cobertura geodésica, totalmente desmontável, com 100 metros quadrados. Agora abra os olhos. É a realidade de um novo capítulo de inovação no Pará.
Essa estrutura, que leva apenas dois dias para ser montada, é um dos Laboratórios Criativos da Amazônia, de pesquisa científica sobre novos usos e mercados para os produtos amazônicos.
A iniciativa é um dos frutos do projeto Amazônia 4.0, liderado pelo climatologista Carlos Nobre, cujo objetivo é estimular uma cadeia de produção local, permitindo o desenvolvimento das comunidades e a preservação da biodiversidade com uso de tecnologia avançada.
O foco inicial do projeto é a cadeia de cacau, em que um vasto time de profissionais de diversas áreas do conhecimento e universidades combinam informações científicas e saberes tradicionais capazes de atrair novas oportunidades de mercado.
A estrutura é equipada com kit de energia solar, purificador de água com uso de nanotecnologia, impressora 3D, torrador de semente de cacau e máquinas de beneficiamento sob rigoroso controle de tempo, umidade e temperatura. A ideia é entrar matéria-prima no laboratório e sair chocolate embalado para o consumidor ou para demonstração e capacitação nas comunidades amazônicas.
O primeiro laboratório será instalado em Santarém, como uma escola temporária de campo. Com previsão de funcionamento em abril, seguirá para outras comunidades de forma itinerante, conforme adiantou ao Pará Terra Boa o biólogo Ismael Nobre, irmão de Carlos.
“Amazônia 4.0 é um projeto que foi concebido para dar uma resposta inovadora para esse debate que já se arrasta há décadas sobre desenvolver a Amazônia ou conservar a floresta. É um debate que se mostrou bastante estéril no sentido de apontar um caminho para o futuro para que as duas coisas aconteçam. Elas sempre foram colocadas como excludentes e se colocou muito uma ênfase sobre a conservação estreita em uma grande área da Amazônia”, afirma Ismael Nobre, biólogo, doutor em Dimensões Humanas dos Recursos Naturais pela Colorado State University e um dos idealizadores do projeto.
Ele alerta sobre o risco de savanização da Amazônia caso as árvores sejam derrubadas de forma predatória pelo capital que se recusa e enxergar o valor comercial da floresta em pé. No Pará, a situação é tão grave que os municípios que mais desmatam no Estado, também possuem os piores índices de desenvolvimento humano do Brasil.
“Se começamos a usar acima de 20 ou 25% do território você começa a ter a perda automática da floresta por conta da falta de água das próprias árvores. Você corta esse ciclo hídrico e o resultado é a savanização. Um processo que vai avançando com uma floresta seca, sujeita ao fogo, um ponto de não retorno. Não podemos acreditar que metade preserva e metade não preserva. A ciência já chegou a essa conclusão.”
O cientista acrescenta que o Amazônia 4.0 busca valorizar a matéria-prima tão rica e diversa da floresta, com ganhos aos que colocam a mão na massa, de forma que o produtor não volte a ser um escravo dos tempos coloniais.
“O que acontece nessa cadeia de valor é que a matéria-prima tem a menor participação econômica, menor remuneração de seus produtores. A ideia da Amazônia 4.0 é quebrar esse modelo colonialista que a Amazônia ainda vive de ser eterna produtora de matéria-prima, algo muito parecido ao que era o Brasil no tempo da Colônia com metrópoles na Europa extraindo recursos do Brasil para gerar riqueza para outros atores”, provoca.
Chocolate 3D
A decisão de começar pelo chocolate é certeira, pois o Pará é o maior produtor de cacau do Brasil, de acordo com recente estimativa divulgada neste mês de janeiro de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
“O chocolate gera riqueza em outros lugares que não estão, em geral, na Amazônia, de onde ele sai. As exceções nos mostram que existe outro caminho, mas existe ainda a dificuldade de escalar esse modelo. A Amazônia 4.0 quer envolver as comunidades para gerar valor e trabalhar a matéria-prima com expertise. Com tecnologia, você agrega valor às comunidades”, diz Nobre.
Segundo o biólogo, para mudar substancialmente a realidade da Amazônia, as soluções de agregação de valor aos produtos amazônicos devem estar acessíveis a qualquer comunidade, em qualquer lugar, levando em consideração a extensa área territorial com suas dificuldades de logística. Por isso, o laboratório é itinerante para atender às diferentes comunidades.
“Levamos todo o equipamento de prototipagem 3D, como impressora, para dar formas diferentes ao chocolate, para que as manifestações culturais das comunidades aflorem, com total liberdade a partir de ferramentas supertecnológicas, de forma que transformem a riqueza biológica e ambiental da matéria-prima em riqueza econômica”.
Tecnologia acessível
Nobre destaca a importância da troca de conhecimento entre os povos da floresta e os muitos profissionais envolvidos no Amazônia 4.0, como engenheiros de computação, de mecatrônica, de alimentos e de produção.
“Trabalhamos a rastreabilidade dos produtos, a identidade de origem de cada coisa para a valorização dos povos que vivem da floresta. Tem outro ator na parte da produção que são as pessoas da comunidade. Líderes de vários segmentos constroem com a gente tudo isso. Então, primeiro conhecemos como essas pessoas trabalham e, depois, recebemos eles em nossos laboratórios. Aliamos o conhecimento científico ao conhecimento tradicional”.
Ribeirinhos, representantes de reserva extrativista, quilombolas, indígenas e mulheres produtoras do Pará, Amapá e Rondônia fazem parte desta fase. “Esse é o público que receberá capacitação em abril. Vamos ajustando esses prazos de acordo com os indicadores da pandemia de covid-19 e andamento da vacinação pelo Brasil”.
Em 2021, eles visitaram fábricas e lojas de chocolate de diferentes portes no Estado de São Paulo, incluindo um centro tecnológico em São José dos Campos e instalações em Campos do Jordão (SP) para observar o consumo de chocolate em locais de luxo.
“Hoje os povos do interior da Amazônia vivem uma exclusão tecnológica. Dá para fazer a inclusão e fazer gerar mais riqueza sem ser assistencialista, participando da economia com tecnologia”.
Financiamento
O projeto Amazônia 4.0 é financiado por diversas instituições, como o Instituto Humanize, Instituto Arapyaú, Instituto Clima e Sociedade, o fundo holandês The Good Energy Foundation, Aldo Solar, Banco Itaú, além das embaixadas da Austrália e da França.
“O grande financiador desse projeto seria o Fundo Amazônia, que casava perfeitamente com os objetivos. Infelizmente o fundo foi estrangulado (pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, hoje investigado pelo STF). Esse projeto nasceu por conta da urgência climática. Conseguimos passar esses objetivos para os doadores”, diz Nobre.